O contempt of court e sua perspectiva histórica na common law

AutorJúlio César Bueno
Páginas439-464
O CONTEMPT OF COURT E SUA PERSPECTIVA
HISTÓRICA NA COMMON LAW
Júlio César Bueno
LL.M (Cantab 1996), Ph.D (USP 2001). Advogado.
“There is no greater crime than Contempt and Disobedience, for all persons within the
Realm ought to be obedient to the King and within his Peace.” (Henry de Bracton, De
Legibus et Consuetudinibus Angliae: English & Latin: Bracton on the Laws and Customs
of England, tradução e anotações de Samuel E. Thorne, Buffalo: W.S. Hein, 1997, p. 39.)
Sumário: 1. O contempt of court2. OS desaos da investigação histórica de direito compara-
do – 3. A busca pela correta designação terminológica – 4. Os limites necessários aos estudos
históricos – 5. A proteção da dignidade e da administração da justiça no período anglo-saxão:
o contempt of the king e as oferhyrnes 6. A proteção da dignidade e administração da justiça
a partir da conquista normanda e a formação da common law 7. A atribuição divina do
poder real e de sua lei – 8. A star chamber e a sua inuência no procedimento do contempt
of court 9. Conclusão: a evolução da doutrina do contempt of court nos países que adotam
a common law 10. Referências bibliográcas.
1. O CONTEMPT OF COURT
1. A adequada e ef‌icaz administração da justiça, em conformidade com a lei, é
função básica do Estado e garantia fundamental do cidadão. Assim, durante séculos,
os juízos e tribunais da common law assumiram e implementaram o poder de pre-
venção e punição de condutas capazes de obstruir, prejudicar, embaraçar, impedir,
desrespeitar ou perturbar a administração da justiça. Porém, não há nada de intrín-
seco nas palavras de uma ordem ou decisão judicial capaz de, por si só, compelir o
jurisdicionado a obedecê-la. A mera ordem ou decisão judicial, desprovida de meios
e recursos que assegurem e garantam o seu efetivo cumprimento, pode revelar-se
inútil diante da obstinada recalcitrância do seu destinatário ou de comportamentos
desidiosos ou desrespeitosos das partes, advogados, funcionários de um juízo ou
tribunal e terceiros para com a administração da justiça.
2. É, pois, indispensável que o poder judiciário disponha de meios e recursos
ef‌icazes e válidos para impor sua autoridade e fazer-se respeitar, sob pena de suas
ordens ou decisões serem recebidas pelos jurisdicionados como meras recomendações
ou solicitações de conduta, ausente um fundado temor social pela sua desobediência.
Esse poder de repressão de condutas perniciosas e comprometedoras da administração
da justiça é “poder de contempt” ou contempt power. É exercido por um juiz singular
– com ou sem a participação de um júri popular – ou por um tribunal de recursos,
DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTEMPORÂNEO.indb 427DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTEMPORÂNEO.indb 427 23/03/2020 18:44:3023/03/2020 18:44:30
JÚLIO CÉSAR BUENO
428
em procedimento sumário, e as regras que lhe governam o exercício constituem a
doutrina do contempt of court.
3. Para Fox, a doutrina do contempt of court é o conjunto de regras colocadas à
disposição do poder judiciário “para preservar a disciplina, essencial à administração
da justiça”, prevenindo ou reprimindo “atos de desobediência ao rei e suas cortes
ou obstrução ao curso da justiça”.1 Para Hazard e Taruffo, a doutrina do contempt of
court deve ser compreendida a partir do efeito produzido por suas regras e princípios
diante do caso concreto e sua funcionalidade, sendo “a última instância das sanções
judiciais”, pois é o poder intimidatório decorrente de sua aplicação que confere ef‌i-
cácia ao recurso judicial e importância ao direito da parte, prevenindo ou reprimin-
do a prática de atos contrários ao seu reconhecimento e efetivação em juízo.2 Lord
Simon também destaca a sua funcionalidade e def‌ine contempt of court como “um
termo genérico que descreve a conduta [do Judiciário] em relação a determinados
atos praticados, num juízo ou tribunal, com vistas à subversão do referido sistema
de administração da justiça ou, ainda, a f‌im de impedir que os cidadãos façam uso
do sistema para a solução de conf‌litos”.3
4. A doutrina do contempt of court pode ser, assim, def‌inida, como o conjunto
de princípios e regras destinados a assegurar a adequada administração da justiça e
preservar a sua dignidade, por meio dos quais a lei, em nome do interesse público,
toma a si o encargo de defender-se e assegurar que seus comandos sejam efetiva-
mente respeitados e cumpridos, prevenindo e reprimindo os atos de desobediência,
desprezo, interrupção, obstrução e impedimento, atuais ou iminentes, das partes
ou de terceiros, no curso de um processo judicial, denominados atos de contempt of
court. Trata-se do fundamento jurídico que permite ao poder judiciário vindicar a
sua autoridade e inf‌ligir punição sumária a todos os que ousarem interferir na admi-
nistração da justiça, prejudicando-a, por meio da prática dos atos def‌inidos como
atos de contempt of court.4
1. “Rules for preserving discipline, essential to the administration of justice, came into existence with the
law itself, and contempt of court (contemptus curiae) has been a recognized phrase in English law from the
twelfth century to the present time. In the Anglo-Saxon laws and trough the records of the Curia Regis and
the Parliament, the f‌irst treatises on law and the Year Books, the development of ‘contempt’ in the legal
sense can be traced, until by the fourteenth century the principles upon which punishment was inf‌licted
to restrain disobedience to the King and his courts as well as other acts which tend to obstruct the course of
justice, had become f‌irmly established.” Sir John C. Fox, The History of Contempt of court: the Form of Trial
and the Mode of Punishment, Oxford: Clarendon Press, 1927, p. 1.
2. “The ultimate judicial sanction is to hold a recalcitrant party in contempt of court. Contempt of court consists
of refusal to obey a direct order.” Geoffrey C. Hazard Jr. e Michele Taruffo, American Civil Procedure: An
Introduction, New Haven: Yale University Press, 1993, p. 202.
3. “Contempt of court is a generic term descriptive of conduct in relation to particular proceedings in a court
of law which tends to undermine that system or to inhibit citizens from availing themselves of it for the
settlement of their disputes.” Attorney General v. Times Newspaper Ltd (1974) AC 307. Segundo Lord Simon,
relator deste importante caso julgado pela House of Lords, da Inglaterra, é “a lei” e não somente “a justiça”
ou “o poder judiciário” que se defendem por meio das regras de contempt of court.
4. Para melhor exame do tema, Júlio César Bueno, Contribuição ao estudo do contempt of court e seus ref‌lexos
no processo civil brasileiro, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTEMPORÂNEO.indb 428DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTEMPORÂNEO.indb 428 23/03/2020 18:44:3023/03/2020 18:44:30

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT