Contencioso Administrativo X Jurisdição Una

AutorDaniel Augusto Teixeira De Miranda
CargoGraduando em Direito pela UnB
Introdução

Dentro dos modelos de jurisdição utilizados pelos países de tradição romano-germânica diferenciam-se o contencioso administrativo do sistema da jurisdição una.

O presente trabalho objetiva realizar um breve histórico acerca do contencioso administrativo francês e do praticado em Portugal para delinear os moldes desse sistema diante de duas utilizações diferenciadas.

Realizada essa breve incursão pelos sistemas europeus, será conceituado o sistema da jurisdição una, sem tentar trazer maiores digressões históricas sobre sua formação. Definido o conceito de jurisdição una e analisado o processo administrativo brasileiro, serão analisadas as similitudes e discrepâncias existentes entre os sistemas e os maiores desafios porque passam nos dias de hoje. O objetivo do presente trabalho é demonstrar que os princípios jurídicos decorrentes do Estado Democrático de Direito, no que tange à tradução dos anseios sociais em seu significado de alcance efetivo dos direitos dos jurisdicionados e à busca pela tutela jurisdicional, são extremamente semelhantes, apesar das diferenças de abordagem existentes.

I - Origens do Contencioso Administrativo - O modelo francês

Consoante asseverado na introdução deste trabalho, tem-se por objetivo estabelecer uma, ainda que breve, análise das similitudes e dicotomias existentes entre os modelos de Jurisdição1 Una e Contencioso Administrativo.

Para tanto, impende, inicialmente, realizar uma análise das origens e do desenvolvimento do chamado contencioso administrativo, sistema que, notadamente, possui como seu maior expoente de desenvolvimento a França.

Contencioso administrativo pode ser definido, modernamente, como:

"Una via judicial plenária y efectiva para que la Administración, como gestor fiduciário que es del pueblo, haga efectiva su responsabilidad o dácion de cuenta ante los ciudadanos, eliminando todos los viejos obstáculos radicados en la tradición de exención de la justicia del viejo poder público, lejano y absoluto, y demoliendo todas las sucesivas y tenaces técnicas de impedir, limitar o condicionar la plenitud del conocimiento judicial que durante dos siglos han ido sucessivamente apareciendo."23

Entretanto, esse conceito calcado nos ensinamentos de Chapus4, representa uma definição alcançada após mais de dois séculos de desenvolvimento do contencioso administrativo e de maturação do conceito.

Tal sistema tem origens que remontam ao absolutismo francês, o Ancién Regime, ou Antigo Regime5, quando o Rei, como instância última de revisão das decisões, instituiu uma divisão entre a jurisdição administrativa e a jurisdição referente aos litígios6 privados.

Entretanto, apenas com a Revolução Francesa7 e com a Declaração dos Direitos Homem e do Cidadão8, ambas ocorridas em 1789, o contencioso administrativo passou a ter os moldes que até hoje podem ser percebidos.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi influenciada, dentre outros, pelo pensamento e ideologia de Rosseau, principalmente o de que "um povo livre obedece, mas não serve; tem chefes, mas não donos; obedeces às Leis, mas nada mais que as Leis e é por força das Leis que não obedece aos homens" (Rousseau, 2002, p. 15). É o que se pode chamar de primado do princípio da legalidade. A partir disso, define a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seu artigo 5º, que "tudo que não está proibido pela Lei não pode ser impedido e ninguém pode ser obrigado a fazer o que a lei não ordena".

A idéia de império da legalidade de Rousseau levou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 a, em seu artigo 15, instituir que a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público de sua administração.

O contencioso administrativo, vale dizer, a importação do sistema de repartição da jurisdição já adotado pelos Parlamentos9 durante o Antigo Regime, tem por fundamento básico a particular interpretação que foi concedida pelos franceses ao pensamento de Monstesquieu10. Enquanto a maior parte das nações que adotaram a idéia da tripartição dos poderes aplicaram o entendimento de influência e controle mútuos entre poderes, a França optou por aderir à idéia de uma tripartição total dos poderes. Admitiu-se a tripartição como uma criação de três funções11. Não haveria monopólio da função jurisdicional pelo Poder Judiciário. Caberia a cada um dos poderes por em prática todas as três funções. Além dessa interpretação, consoante asseverado, os Parlamentos (órgãos julgadores ainda atuantes após a Revolução) eram instituições com origem no Antigo Regime, que representavam forte ameaça de oposição aos revolucionários, fato que, sem sombra de dúvidas, foi mais um dos elementos que levaram à repartição da atividade jurisdicional. Com isso, os revolucionários objetivaram evitar qualquer espécie de ingerência. O controle dos atos da administração seria, portanto, realizado a partir da criação de uma jurisdição própria e específica para discutir e analisar a legalidade dos atos administrativos. E foi, com base em todas essas influências históricas e ideológicas que, na Assembléia Constituinte de 1790 (conceito posteriormente incluído na Constituição de 1791, Título III, Capítulo V, art.3) se formulou o conceito de Direito Administrativo na França:

"As funções judiciais são e permanecerão separadas das funções administrativas. Os juizes não poderão, sob pena de prevaricação, interferir, de qualquer maneira que seja nas operações dos órgãos administrativos nem chamar a sua presença os administradores, em razão de suas funções."

A partir daí, surgiu aquilo que foi denominado de ministro-juiz, pois os atos executivos eram revisados ou julgados pelos próprios agentes públicos que praticaram os atos ou por seus superiores. A decisão final sobre a legalidade ou sobre o cumprimento ou não da determinação judicial incumbia ao próprio agente público ou a seus superiores. Importante ressaltar que essa ideologia de não-intervenção, de qualquer modo, por parte da jurisdição administrativa, ainda perdura. Napoleão I, em 1806 (decretos de 11 junho e 22 de julho), criou o Conseil d´État, ou Conselho de Estado, como órgão responsável para o julgamento dos litígios envolvendo a Administração12. Até então o Conselho de Estado era em tudo semelhante ao Conselho do Rei, sendo responsável pela elaboração de projetos de lei para o Poder Executivo e atuando na área consultiva, desde sua criação. Inicia-se aqui a fase de divisão entre atividades judiciais e administrativas (MAIRAL, 1984, p.59)13.

Todavia essa função jurisdicional administrativa não poderia ser exercida por juízes com a mesma formação de um juiz afeto à jurisdição comum, tanto que, até os dias de hoje, em sua maioria, os Juízes do contencioso administrativo advêm da Escola Nacional da Administração - ENA.

É importante notar que o fenômeno da instituição do contencioso administrativo foi a pedra fundamental para o desenvolvimento e estudo do Direito Administrativo. Foi o Conselho de Estado, com sua jurisprudência precisa e coerente, que logrou dar início ao desenvolvimento do Direito Administrativo1415. Não se pode dizer que o Direito Administrativo não existiria se não houvesse o Conselho de Estado, todavia, é certo, que o Direito Administrativo só possui a atual conformação por conta das decisões do Conselho de Estado que, por sua vez, dependeu da produção doutrinária e jurisprudencial para se consolidar como via jurisdicional íntegra e respeitável. A partir da criação do Conselho de Estado e com as bases postas pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o Conselho passou a desenvolver toda a sua jurisprudência em busca de delimitar as bases do princípio da legalidade como limite para a atuação do agente público16. A definição do âmbito de competência do Conselho do Estado foi construída a partir de decisões do próprio Conselho. Inicialmente o critério utilizado foi o de que a participação do Estado ou a simples possibilidade de sua condenação já implicaria na impossibilidade de julgamento pelo Poder Judiciário.

Com a revogação do artigo 3, Capítulo V, Título III, da Constituição de 1791, por meio do decreto de 19 de setembro de 1870, abriu-se caminho para a responsabilização direta do agente público, abrindo-se espaço para o desenvolvimento da teoria da falta pessoal e da falta do serviço17. Passou-se, então, a ser mitigada a idéia de que nem a Administração ou os agentes públicos poderiam ser responsabilizados pelo Poder Judiciário18.

Ainda na discussão relativa à competência jurisdicional administrativa, tentou-se diferenciar os atos de governo dos atos de gestão, sendo que esses seriam da competência do Poder Judiciário. Pela total incerteza e fluidez dos conceitos, surgiu então a idéia de que incumbiria ao Conselho de Estado processar e julgar as causas relativas à noção de serviço público, entendido como aqueles que cumpririam as missões do Estado. Com o aumento da consciência social e das missões atribuídas ao Estado e, principalmente, com o advento do Estado Social19, esse conceito também perdeu força. Atualmente, a idéia aplicada à competência é tirada da própria idéia de regime jurídico, vale dizer, qual regime deverá ser aplicado à determinada situação. É por isso que entes privados em exercício de função delegada do Estado respondem perante a justiça administrativa. É dizer; Se a discussão envolver a aplicação de regime jurídico de direito público (rectius direito administrativo) a competência para processar e julgar o litígio será de um dos órgãos integrantes da justiça administrativa.

O acesso ao contencioso administrativo ocorria e continua a ocorrer, basicamente, sob duas formas: o contencioso ou recurso de...

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