Conteúdo e extensão da responsabilidade médica relacionada ao consentimento do paciente

AutorFlaviana Rampazzo Soares
Páginas229-244
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CONTEÚDO E EXTENSÃO
DA RESPONSABILIDADE MÉDICA
RELACIONADA AO CONSENTIMENTO
DO PACIENTE
No decorrer deste trabalho, foram apontadas diversas situações que demonstram
as cautelas necessárias à avaliação da existência, da validade e da ef‌icácia do consen-
timento do paciente, bem como das pautas sugeridas à sua interpretação. Além disso,
verif‌icou-se que o consentimento é uma decisão permissiva à atuação médica, fruto de
um encadeamento informativo e decisório que se desenvolve como um processo de
maior ou menor extensão conforme as circunstâncias concretamente consideradas,
permeada por deveres anexos, que são extraídos dos princípios delineados nos tópicos
antecedentes e da própria natureza do ato.
A partir disso, é necessário verif‌icar como esses aspectos podem reverberar nas de-
cisões proferidas em processos judiciais que tenham como objeto pleitos indenizatórios
fundados em atos médicos praticados sem consentimento ou mediante consentimento
defeituoso.
Assim, nessa atividade jurisdicional, e em geral na interpretação de um consenti-
mento esclarecido, deve-se buscar a ef‌iciência, sob um perf‌il funcional, para extrair o que
for possível à reconstrução da intenção do paciente ao tempo em que o consentimento
foi tomado, em especial quanto às possibilidades que poderiam estar à disposição para
viabilizar a sua decisão, considerando a função principal desse consentimento, que é
o de permitir a decisão madura e ref‌letida do paciente sobre os rumos do atendimento
médico respeitante à sua saúde, a partir de informações adequadas, naquilo que esse
consentimento for exigível.
Ainda, tenha-se em mente que, mesmo quando o julgador deva ter a sua atuação
circunscrita a parâmetros normativos preestabelecidos com generalidade e abstração
(inclusive as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados), eles não nasceram
para ser suf‌icientemente precisos, de modo a pautar especif‌icamente toda a miríade de
possibilidades que a vida, de maneira criativa, oferece, mas, sim, para indicar caminhos
a seguir na construção de uma resposta concreta.
Def‌inidos os contornos dos princípios e regras aplicáveis, torna-se necessário
examinar quais são as consequências decorrentes do seu não atendimento (responsa-
bilidade pela violação do direito de autodeterminação do utente), tendo-se as possíveis
dimensões: (a) estrutural, em que é possível falar de inexistência ou invalidade (a.1)
CONSENTIMENTO DO PACIENTE NO DIREITO MÉDICO • FLAVIANA RAMPAZZO SOARES
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total ou (a.2) parcial e (b) endógena, em que se questiona se é ou não possível falar em
convalidação, ou mesmo em responsabilidade médica.
Dessa forma, neste capítulo, serão tratadas as consequências relacionadas à inexis-
tência ou a falhas no consentimento, essencialmente no tocante à responsabilidade civil.
8.1 INVALIDAÇÃO TOTAL OU PARCIAL, CONSERVAÇÃO E CONVALIDAÇÃO NO
CONSENTIMENTO DO PACIENTE
O sistema jurídico brasileiro permite que, na medida do possível, os atos praticados
de acordo com a boa-fé possam ser aproveitados e, assim, levados a um grau aceitável de
conformidade, o que decorre da incidência do chamado princípio da conservação, o qual
estabelece a necessidade de preservação máxima do que seja ajustado em uma relação
jurídica, “a f‌im de se tutelar juridicamente o resultado prático perseguido pelas partes”1.
A conservação é um resultado (um f‌im) que deriva da incidência de f‌iguras jurídicas
(meios) e que pode ser atingido conforme as circunstâncias concretas. Por isso, as suas
linhas (seja na possibilidade ou impossibilidade, seja quanto à medida dessa conservação,
com convalidação total ou parcial) devem ser traçadas casuisticamente, “variando de
acordo com a f‌igura jurídica que sirva de meio para alcançar tal conservação”2.
Os meios referidos de conservação são essencialmente a conf‌irmação posterior, a
invalidade parcial e a conversão substancial3.
Na análise dos atos anuláveis e a sua correlação com a conservação, é possível
sustentar que, conforme as circunstâncias a serem concretamente examinadas, são
passíveis de convalidação pela conf‌irmação de seus partícipes, salvo direito de terceiro
(arts. 171 e 172 do CC). No entanto, exige-se que a conf‌irmação, além da contemplar
“a substância do negócio celebrado”, contenha a conf‌irmação da vontade de sua ma-
nutenção (art. 173 do CC).
Na hipótese de um consentimento à atuação médica, emitido por paciente relati-
vamente incapaz, é possível que haja sua conf‌irmação posterior (rectius: aprovação).
Por exemplo, um paciente não emancipado que emitiu o consentimento pouco antes
de completar 18 anos, submetido a essa atuação, e que segue conf‌irmando-o, por estar
de acordo com o procedimento adotado pelo prof‌issional que o atendeu, efetivado de
acordo com as boas práticas.
Nesse exemplo, a conf‌irmação expressa feita pelo paciente a posteriori, ao tornar-
-se civilmente capaz, extingue a ilicitude da intervenção e a pretensão indenizatória4
que o paciente pudesse ter contra o médico por violação à autodeterminação, porque
1. ZANETTI, Cristiano de Sousa. A conservação dos contratos nulos por defeito de forma. São Paulo: Quartier Latin,
2013. p. 55.
2. MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Interpretação..., cit., p. 320.
3. Ver, a respeito, DEL NERO, João Alberto Schützer. Conversão..., cit., p. 352.
4. Para melhor compreensão do texto, entende-se que a expressão “indenização” compõe gênero, do qual a compen-
sação (típica dos danos extrapatrimoniais) e a reparação (condizente com os danos patrimoniais) são espécies.

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