Contradições da criminalização do aborto

AutorReis Friede
CargoDesembargador Federal (TRF2)
Páginas7-10

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Uma sociedade que se pretende democrática não pode legitimamente se permitir condenar uma mulher a ter filhos não planejados, simplesmente criminalizando uma conduta, até porque a singela e irrefletida proibição não possui a plena efetividade de evitar a prática, como demonstram os sempre assustadores números envolvidos.

Estatísticas da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) também indicam que, no Brasil, uma em cada cinco mulheres com até 40 anos já fez aborto, comumente realizado nas idades que compõem o centro do período reprodutivo feminino, isto é, entre 18 e 39 anos (Diniz, Debora; Medeiros, Marcelo; MADEIRO , Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 653- 660, Fev. 2017). A pesquisa aponta também que a religião não é fator importante para a diferenciação das mulheres no que diz respeito à

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realização de tal prática, uma vez que reflete, com relativa exatidão, a composição religiosa do país: a maioria dos abortos foi feita por católicas, seguidas de protestantes e evangélicas e, em menor número., por mulheres de outras religiões ou sem religião.

Na verdade, há reconhecidamente no Brasil um quadro paradoxal que acentua as inerentes e reconhecidas contradições do país, posto que, enquanto cerca de 800 mil mulheres, todos os anos, interrompem a gravidez, milhares de famílias aguardam nas intermináveis filas de adoção em busca de ter um filho.

Ao criminalizar ambas as práticas, o aborto e a adoção direta, o Estado brasileiro conseguiu alguns notáveis feitos, em uma lamentável mistura de ignorância e autoritarismo: por um lado, gastar mais de 140 milhões de reais por ano em internações no Sistema Único de Saúde (SUS) por conta de complicações médicas em decorrência de aborto clandestino e, por outro, frustrar casais que se dividem entre gastar milhares de reais em clínicas de fertilização humana ou em morosos, burocráticos e mesmo cruéis procedimentos estatais de adoção em que há muito mais candidatos do que crianças aptas para tanto. Fica evidente que o assunto precisa ser debatido para muito além da esfera jurídica, pois os gastos com internação (sem falar das mortes e das sequelas) indicam mais tratar-se de um problema de saúde pública do que propriamente de uma questão criminal.

Nesse sentido, os dados da PNA indicam o uso indiscriminado (e altamente arriscado) de medicamentos para a indução do aborto em mais da metade da amostra pesquisada, ao passo que na outra metade, conforme se apurou, o mesmo procedimento abortivo foi realizado em condições extremamente precárias de saúde.

Também merece registro que o número de internações pós-aborto, contabilizado pela PNA, é surpreendentemente elevado, ocorrendo em quase a metade dos casos. Tal fenômeno, com consequências de...

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