Contrato eletrônico como cibercomunicação jurídica

AutorRicardo de Macedo Menna Barreto
Páginas329-351

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1 Introdução

O presente trabalho1 tem por escopo observar sistemicamente o contrato eletrônico. Possibilitada pelo ciberespaço, a contratação eletrônica surge como uma das características mais marcantes do comércio eletrônico (e-commerce), retratando bem a realidade contemporânea do Direito, a saber, uma realidade comunicativa cada vez mais dominada pelo virtual.

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Entendemos que essa figura contratual híbrida ainda encontra-se carente de uma observação diferenciada por parte dos juristas. Assim, na perspectiva deste trabalho, observaremos o contrato eletrônico a partir de uma (nova) categoria que denominamos “cibercomunicação jurídica”.

Note-se que a comunicação é um elemento característico de sistemas sociais.2 Não obstante, partindo da noção de cibersistemas, pode-se falar em uma comunicação no ciberespaço, isto é, em uma “cibercomunicação”.3 O contrato eletrônico, nessa perspectiva, é uma forma diferenciada de comunicação, pois, graças a ele, sistemas virtuais podem acoplar-se ao processo de reprodução dos elementos compositores do sistema social, especificamente do sistema jurídico.

Partiremos inicialmente da análise dos aspectos que envolvem a Internet, o ciberespaço e a comunicação (1). A Internet possibilitou a virtualização do mundo em que vivemos, alargando a capacidade comunicativa da sociedade, criando um correlato virtual que se traduziu pela noção de ciberespaço. Este ciberespaço se caracteriza pelo universo das redes digitais, podendo ser considerado uma nova fronteira econômica e cultural, constituindo, ainda, um campo vasto, aberto, parcialmente indeterminado4, que necessita ser incorporado pela doutrina jurídica brasileira sob uma perspectiva diferenciada. A comunicação, por sua vez, é vista a partir da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann, como um elemento característico de sistemas sociais. No entanto, a partir das contribuições de Gottfried Stockinger, essa noção de comunicação sofre algumas alterações substanciais. Tais alterações nos levarão direto àquilo que Stockinger denominou cibercomunicação.

Por conseguinte, teceremos algumas observações acerca do comércio eletrônico (2). O comércio eletrônico possui uma dinâmica que se caracteriza, principalmente, por comunicar além das fronteiras físicas. Hodiernamente é possível, em praticamente qualquer país, comprar produtos via Internet. Daí optamos por uma breve (porém necessária) análise dos aspectos legais desse tipoPage 331 de comércio. Destacaremos neste ponto algumas iniciativas legais da Colômbia; por conseguinte, alguns aspectos da Diretiva 2000/31/CE (União Europeia) e, derradeiramente, a Lei Modelo da UNCITRAL. Esta última se destaca por ser atualmente a iniciativa normativa mais ampla e de maior flexibilidade no que tange aos aspectos do comércio eletrônico

Derradeiramente, observaremos o contrato eletrônico como cibercomunicação jurídica (3). Tendo analisado na primeira parte deste ensaio aspectos atinentes à comunicação social, veremos nesta terceira parte como, a partir de uma noção de cibercomunicação, o contrato eletrônico pode ser explicado. Nessa perspectiva, o contrato eletrônico é visto como acoplamento estrutural, possibilitando a interação entre sistemas sociais e cibersistemas, sendo, portanto, uma figura híbrida.

O contrato eletrônico é fruto de uma realidade cada vez mais dominada pelo virtual. Observá-lo modernamente, a partir da união das ideias de Luhmann e de Stockinger, pode indicar diferentes possibilidades na construção de alternativas para a tomada de decisões no campo da dogmática contratual.

2 Internet, ciberespaço e comunicação

Após o surgimento da Internet e do ciberespaço, o computador fez com que as relações sociais se revestissem com configurações de notável complexidade. Nesse sentido, entendemos que o Direito não conseguiu acompanhar a evolução social no campo das tecnologias da informação, em especial no tocante aos novos meios de comunicação, como a Internet.

Por Internet entendemos aqui, conjuntamente com Dimaggio, “the electronic network of network that links people and information through computers and other digital devices allowing person-to-person communication and information retrieval”.5 Note-se que a década de 90 foi decisiva para a popularização do uso da Internet, pois sua utilização massiva se iniciou exatamente naquelesPage 332 anos. Conforme Dizard, a rede vinha dobrando em tamanho a cada ano daquela década: só em 1995, por exemplo, a Web chegou a oferecer mais de “três milhões de páginas multimídia de informação e entretenimento, a maior parte gratuitamente”.6

Hoje podemos afirmar que a Internet “virtualizou” o mundo, duplicando-o, ou seja, criando para ele um correlato imaterial, virtual, para tudo que há “fisicamente” em sociedade. Houve, com isso, uma amplificação da capacidade comunicativa da sociedade, gerando um espaço privilegiado de comunicação, que se denominou ciberespaço.

Ciberespaço, segundo Lévy, é “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores”.7 A principal consequência desse espaço virtual é o irrefreável fluxo comunicacional gerado pela crescente entrada de informações que ocorre diariamente na Internet. Com isso o virtual se inseriu em todos os campos da vida em sociedade; conforme Quéau, “cela s’ accompagne d’une modification radicale de notre regard sur le monde, de notre manière d’envisager lês problèmes et de lês résoudre”.8

O ciberespaço pode ser considerado não só um meio otimizador da comunicação, mas sim como uma forma de aumentar (ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, reduz) a complexidade social. Nesse espaço virtual, a complexidade é sempre crescente, devido ao fato que “anyone can set up a web page, anyone can use (for minimal cost) electronic mail, and anyone can access information that may or may not the appropriation to all users”.9 Cria-se, desse modo, uma estrutura que pode ser comparada a um verdadeiro sistema neurológico mundial, “una gigantesca rede de emisoresPage 333 y receptores, que interactúan mediante agentes ‘neurotransmisores’ electrónicosque permite al ser humano comunicarse en tiempo y espaço real, a semejanza do cérebro humano”.10

Daí podermos afirmar, sem receio de cairmos em exageros, que o ciberespaço é hoje um correlato virtual para praticamente tudo que se encontra ancorado no mundo físico, pois a partir dele, inserem-se neste mundo comunicativo: bancos, lojas, organizações, pontos/locais de encontro etc. Por isso, Lévy afirma que “le cyberspace nous permet d'observer de manière de plus en plus directe à peu près tout ce que nous voulons voir, et cette tendance est évidemment appelée à s'accélérer dans l'avenir”.11 Ora, boa parte do comércio encontra-se hoje aportado em estruturas virtuais, facilitando em diversos aspectos a circulação de produtos os mais diversos. Produzem-se a partir daí operações que repercutem tanto no nível social como no ciberespacial. E nessa dinâmica entre o virtual e o material/físico, a sociedade se erige interdependente e comunicativamente. Do ponto de vista sistêmico, fala-se de uma sociedade composta de comunicações, na qual toda comunicação é uma operação interna à própria sociedade. Logo, surge a pergunta: poderia existir comunicação fora da sociedade?

Cabe destacar que, para Luhmann, a comunicação é o elemento básico da sociedade. Conforme esse autor, a comunicação é uma síntese entre informação, ato de comunicação e compreensão.12 Nesse sentido,

si la sociedad está constituida por la totalidad de todas las comunicaciones, el resto del mundo está condenado a permanecer sin palabra. Se retira al silencio; aunque ni siquiera éste es un concepto adecuado porque sólo puede permanecer en silencio quien pude comunicar.13

A comunicação, portanto, é um elemento característico de sistemas sociais. Estes se erigem e se articulam comunicativamente, e somente dessa maneira. Ora, a so-Page 334ciedade “é o sistema abrangente de todas as comunicações, que se reproduz autopoieticamente, na medida em que produz, na rede de conexão recursiva de comunicações, sempre novas (e sempre outras) comunicações”.14

No entanto, a partir das contribuições de Gottfried Stockinger, essa ideia de comunicação sofre algumas alterações substanciais. Ou seja, há uma (nova) diferenciação que pode (e precisa) ser feita, a saber, entre sistemas sociais e cibersistemas.15 Na lógica da diferenciação sistema/ambiente empregada por Luhmann, significa afirmar que ambos (sistemas sociais e cibersistemas) são operativamente fechados, constituindo-se reciprocamente ambiente um do outro. Para ser mais preciso, Stockinger fala em “ciberambiente” toda vez que um cibersistema constituir ambiente de um sistema social. O ciberespaço, na perspectiva desse autor, pode ser conceituado como “ambiente de mídia que é formatado para receber determinados sistemas virtuais acionados por software”.16 Sob essa ótica, a comunicação permanece, tal qual Luhmann, impessoal, ou seja, não se fala de sujeitos/indivíduos, pois “já não é o usuário que estabelece os limites e o horizonte da comunicação. É um sistema operacional eletrônico, em relação ao qual os usuários formam apenas o seu ambiente”.17

Desse modo, sistemas sociais passam a criar uma relação de interação comunicativa com cibersistemas, criando-se uma relação de dependência, sendo que essa “dependência mútua também se reproduz e passa, assim, a fazer parte de cada sistema, através de interpenetração e acoplamento estrutural”.18 É justamente em relação ao acoplamento desses distintos tipos de sistemas que trata este artigo.

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Partindo da proposta de Stockinger de observar sistemas virtuais como cibersistemas, pode-se falar igualmente em uma comunicação no ciberespaço, isto é, em uma “cibercomunicação”...

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