Contratos de Assistência Privada à Saúde

AutorJosiane Araújo Gomes
Ocupação do AutorMestra em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Especialista em Direito das Famílias pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Servidora do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG)
Páginas71-159

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Assentado o caráter fundamental e social do direito à saúde, cumpre, neste capítulo, analisar os contratos de assistência privada à saúde, de modo a identificar a sua adequada caracterização em face da legislação ora vigente, composta, notadamente, pelo Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 9.656/98 e pelas Resoluções emanadas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

De fato, para que se possa compreender a necessidade e os limites da intervenção do Poder Judiciário nos contratos de plano de saúde - tema a ser abordado no 3º capítulo - faz-se mister delimitar a definição e a caracterização dos requisitos constitutivos imprescindíveis para que referidos contratos atinjam seu objetivo central: assegurar aos usuários o adequado acesso aos serviços de assistência médico-hospitalar, em observância ao perfeito equilíbrio entre a cobertura contratada e o valor da contraprestação pecuniária exigida, extirpando qualquer prática abusiva que ofenda o direito fundamental à saúde.

Para tanto, em primeiro lugar, buscar-se-á traçar o desenvolvimento normativo dos contratos de plano de saúde, partindo-se do passado recente do direito brasileiro e, principalmente, a sua análise após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual trouxe previsão expressa permitindo a atuação de entes privados no ramo de assistência privada à saúde. Em seguida, o foco de análise será o diálogo das fontes existentes na regulação dos contratos de plano de saúde, notadamente o diálogo de complementariedade existente entre a Lei nº 9.656/98 e o Código de Defesa do Consumidor. Posteriormente, será apresentado o conceito do negócio jurídico objeto deste estudo, bem como abordadas as classificações das espécies de planos de saúde. Por sua vez, serão identificadas as oito modalidades de operadoras autorizadas a ofertar planos de saúde no ramo brasileiro da saúde suplementar, destacando-se as suas principais características. Ademais, será abordado o conteúdo dos instrumentos contratuais, analisando-se, primeiramente, os efeitos positivos e negativos da adoção do modelo de contratação por adesão para, após, delimitar-se as

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cláusulas contratuais obrigatórias nos contratos de plano de saúde. Por fim, serão analisados os reflexos da teoria contratual social nos contratos de plano de saúde, o que exigirá a realização de breve abordagem da evolução principiológica da teoria contratual.

Em vista do exposto, espera-se, ao final deste capítulo, conseguir identificar e diferenciar os contratos de plano de saúde dentre as diversas espécies contratuais previstas no ordenamento jurídico brasileiro, bem como possibilitar a sua adequada formação, interpretação e concretização no mercado de saúde suplementar, de modo a alcançar o seu fim último, qual seja, a efetivação do direito fundamental à saúde.

2. 1 Desenvolvimento normativo dos contratos de assistência privada à saúde

O objetivo do presente capítulo consiste em analisar os contratos de assistência privada à saúde, traçando as suas principais características - tanto de ordem normativa, quanto de conteúdo e de eficácia -, de modo a se alcançar a sua adequada delimitação e compreensão. Para tanto, é imprescindível proceder à abordagem do desenvolvimento do sistema normativo brasileiro responsável por regular tais contratações. Os apontamentos que serão aqui realizados terão por início o passado recente do direito brasileiro - década de 1920 - e, principalmente, a sua análise após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual traz previsão expressa no sentido de se permitir a atuação de entes privados no ramo de assistência à saúde.

2.1. 1 Dos contratos de assistência privada à saúde antes da Constituição Federal de 1988

Pode-se afirmar que o ramo da saúde suplementar no Brasil tem seu início nos anos de 1920 e 1930, quando foram instituídas as primeiras organizações de assistência privada à saúde dos trabalhadores. Com efeito, em 24 de janeiro de 1923, foi aprovado o Decreto nº 4.682, conhecido como Lei Eloy Chaves, o qual regulamentava a previdência social e a assistência à saúde, além de trazer disposição expressa acerca da criação de caixa de aposentadoria e pensão nas empresas de estradas de ferro instaladas no país (art. 1º). Assim, referida lei consiste em um "marco no começo do modelo de financiamento que viabilizaria a assistência privada à saúde individual, representando o início da transferência de responsabilidade do Estado para o setor privado".95

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No ano de 1933, quando do então governo do presidente Getúlio Vargas, foram criados os institutos da aposentadoria e pensão para atender certas categorias profissionais, aos quais cabia a compra de serviços médico-hospitalares. Dentre referidos institutos, destacam-se: Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM), criado em junho de 1933; Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários (IAPC), criado em maio de 1934; Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), criado em julho de 1934; e Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), criado em dezembro de 1936, que, posteriormente, deu origem à Fundação de Seguridade Social (GEAP). Ressalte-se, ainda, que em fevereiro de 1938, foi criado o Instituto de Previdência e Assistência aos Servidores do Estado (IPASE).

Nos anos de 1940 a 1950, devido à ineficácia da prestação dos serviços fornecidos pelos institutos de pensões e aposentadorias, tem início o processo de instituição, tanto pelo setor público, quanto pelo setor privado, de sistemas de assistência médico-hospitalar para seus funcionários, momento esse em que foi criada a Caixa de Assistência aos Funcionários do Banco do Brasil, a Patronal e o Instituto de Aposentadoria e Pensão (IAP), este que seria substituído, por meio da edição do Decreto-Lei nº 72/66, pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS).

Contudo, é nos anos de 1960 que se pode afirmar que houve o surgimento dos planos de saúde da forma como são concebidos atualmente. Com efeito, devido ao processo de industrialização e de abertura do mercado interno brasileiro para a instalação de empresas estrangeiras - dentre as quais se destacam as automobilísticas - os empregadores visualizaram a necessidade de possibilitar o acesso a serviços médico-hospitalares aos seus funcionários. Diante disso, surge a medicina de grupo, que consiste no estabelecimento de contratos coletivos, por meio dos quais é disponibilizada cobertura de serviços de saúde aos funcionários das empresas, sendo que referido sistema é financiado pelos empregadores.

Dessa forma, o "florescimento dos planos de saúde iniciou-se com os chamados planos empresariais ou coletivos em que há participação de empregadores que arcavam com parte dos custos do pagamento, garantindo, assim, aos seus empregados tratamentos médicos a custo menor"96. Com

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o desenvolvimento do setor, as empresas do ramo de saúde suplementar passaram a contratar com qualquer pessoa que tivesse interesse nos serviços fornecidos, alcançando, assim, todos que não possuíam plano de saúde empresarial.

Nesse passo, em 1966, foi editado o Decreto-Lei nº 73, responsável por regular as operações de seguros e resseguros e instituir o seguro-saúde para dar cobertura aos riscos de assistência médica e hospitalar (arts. 129 a 135). Por meio desse Decreto-Lei, foi criada a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), bem como o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), este último responsável pela edição da Resolução nº 11, de 21 de maio de 197697, que regulamentava, de forma incipiente, o seguro-saúde, haja vista disciplinar apenas o reembolso das despesas médico-hospitalares.

Quanto à definição de seguro-saúde, o Decreto-Lei nº 73/66, em seu art. 130, prevê, em seu caput, que consiste no pagamento em dinheiro, efetuado pela sociedade seguradora, à pessoa física ou jurídica prestante da assistência médico-hospitalar ao segurado, ressaltando, em seu §2º, que a livre escolha do médico e do hospital é condição obrigatória nesses contratos. No art. 133, há a vedação da cumulação de assistência financeira com assistência médico-hospitalar pela seguradora. Por sua vez, no art. 134, há a proibição de que as sociedades civis ou comerciais que, até a entrada em vigor do decreto-lei, tenham contratado a prestação de serviços análogos aos de seguro-saúde, sob qualquer outra denominação, de efetuarem novas transações do mesmo gênero, ressalvando, apenas, a continuidade das relações...

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