Contratos bancários e relação de consumo: análise propedêutica da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares

AutorAndré Pires Gontijo
Páginas68-97

André Pires Gontijo. Bacharel em Direito pelo UniCEUB, aluno do Programa de Mestrado em Direito das Relações Internacionais do UniCEUB, pesquisador do Núcleo de Estudos Constitucionais – NEC (UnB/UNICEUB) e do grupo de pesquisa Estudo da União Européia e Integração Regional (UnB/UniCEUB), aluno-pesquisador do 3º PIC/UniCEUB/CNPq (2º/2004-1º/2005), Servidor Público do Superior Tribunal de Justiça, lotado no Gabinete da Ministra Maria Thereza de Assis Moura (STJ). E-mail: andre.gontijo@gmail.com

Page 68

1 Introdução

Nos dias atuais, em que a pós-modernidade permeia as relações jurídicas, propiciando a interdisciplinaridade e a flexibilidade da interpretação dos dispositivos postos, o sistema financeiro, como um dos pilares do Estado Constitucional brasileiro, passou e passa por transformações a cada momento.

Nesse sentido, em uma perspectiva real e concretista, e em uma vertente mais pragmática, as transformações científicas e tecnológicas aproximam o cidadão da informação, que se vê rodeado por diversos instrumentos hábeis a lhe proporcionar conforto, comodidade e impulsionar suas relações jurídicas, tanto no âmbito laboral e empresarial, como também no contexto das relações de consumo.

Assim sendo, os contratos bancários, que se tornam mais complexos e mais necessários à vida dos cidadãos, estão em debate nas instâncias de poder. A Emenda Constitucional n. 40, de 2003 (que alterou todo o sistema financeiro nacional, modificando o caput do art. 192 e revogando os demais dispositivos) teve como impulso criador os fatores reais de poder das instituições financeiras, as quais, de maneira legítima, atuaram perante o Poder Legislativo, a fim de aprovar a Proposta de Emenda Constitucional.

Nessa perspectiva, desde o ano de 2002 a Suprema Corte brasileira enfrenta a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 2.591, no sentido de discutir se há incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC) nas relações envolvendo contratos bancários.

Page 69

Logo, o objetivo do presente trabalho é justamente envolver os intérpretes da Constituição1 na discussão institucional, analisando os argumentos do Supremo Tribunal Federal (STF) e, de maneira propedêutica, iluminar o debate constitucional com a teoria da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.

Para tanto, utilizar-se-á como metodologia jurídica2 o tipo de pesquisa instrumental (com consulta à doutrina, à jurisprudência e à legislação referente ao tema) e as técnicas de pesquisa bibliográfica, documental e de observação, a fim de usar e discutir as idéias contidas em seminários realizados3, nos votos da ADI n. 2.5914, bem como o histórico jurisprudencial existente no STF em relação ao direito econômico na Constituição5.

Em relação ao referencial teórico, além das idéias contidas nas obras do professor Peter Häberle6, buscar-se-á na doutrina nacional7 e no direito comparado8 alguns pontos dePage 70 debate para a inserção da teoria da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares, como também no que diz respeito ao diálogo das fontes (público e privado) em razão da constitucionalização do direito9, tudo isso reflexo do fenômeno da pós

modernidade10, norteador das pesquisas nesse começo do século XXI.

2 Notícia Histórica Da ADI 2 591

Em 17.04.2002, o Ministro Carlos Velloso (Relator) proferiu voto no sentido de empregar uma interpretação conforme a Constituição, a fim de excluir a taxa de juros reais nas operações bancárias ou a sua fixação em 12% ao ano da incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC)11.

O Ministro Néri da Silveira, por sua vez, julgou improcedente o pedido formulado na inicial, por considerar a proibição da aplicação do CDC relativamente às matérias previstas no art. 192 da Constituição, salientando que o eventual surgimento de questão relativa aos pressupostos do sistema financeiro deverá ser resolvida de maneira específica.12

O Ministro Nelson Jobim pediu vista dos autos. Retornando em 22.02.2006, proferiu voto no sentido de dar interpretação conforme a Constituição. O Ministro Eros Grau,Page 71 a seu turno, também pediu vista, retornando com estes em 04.05.2006, julgando improcedente a ação, acompanhado pelos Ministros Joaquim Barbosa, Sepúlveda Pertence e Carlos Britto.

O desfecho final do julgamento ocorreu em 07.06.2006, com o score de 09 votos julgando a ação improcedente contra 02 votos que aplicavam a interpretação conforme a Constituição. Na ocasião do desfecho, salienta-se o voto do Ministro Celso de Mello, o qual ressaltou a qualificação da proteção do consumidor como valor constitucional (CF, art. 170, V), no sentido de que as atividades econômicas estão sujeitas à fiscalização e à ação normativa do Estado, como ente regulador (CF, art. 174, caput) da atividade econômica e defensor do consumidor (CF, art. 5º, XXXII), com o dever de evitar práticas abusivas por parte das instituições bancárias.13

Assim, passa-se agora à análise dos fundamentos acerca da aplicação do CDC nas relações bancárias.

3 Os Fundamentos Favoráveis e Contrários à Aplicação Do CDC nas Relações Bancárias

O Ministro Moreira Alves, em Questão de Ordem na ADI n. 319, ressalta a defesa do consumidor em relação ao abuso do poder econômico:

Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros.14

É com esse espírito que se pretende analisar os fundamentos a favor e contra a aplicação do CDC às relações bancárias, em especial mediante a análise dos votos dos Ministros Nelson Jobim e Eros Grau acerca do julgamento da ADI n. 2.591-DF.

3. 1 O Voto do Ministro Nelson Jobim

Page 72

O Ministro Nelson Jobim assevera que existe uma diferença na composição e no funcionamento do sistema de proteção do consumidor e de proteção do poupador e do mutuário, de acordo com a lógica das premissas de proteção de cada um dos sistemas.15

O Ministro ressalta que as relações entre consumidor e fornecedor não estão em pé de igualdade, de tal sorte que é necessária a intervenção do Poder Público, a fim de que o fornecedor não utilize sua liberdade negocial de contratar para opor seu poderio econômico em face do consumidor. Dessa forma, a Constituição possui preocupação direta com a proteção do consumidor (CF, art. 5º, XXXII), procurando compensar as desigualdades fáticas, visando estabelecer maiores restrições à autonomia do fornecedor pelo fato de que o consumidor não teria como fixá-las em uma relação concreta.16

No entanto, o Ministro Nelson Jobim salienta que o Sistema Financeiro Nacional possui uma estrutura completamente diversa, pois o objetivo, segundo o Ministro, é a proteção da população (e não do indivíduo como consumidor isolado), mediante uma política de acompanhamento e controle da economia.17

Os bancos nasceram da aproximação de agentes econômicos deficitários (que necessitam de crédito) e de agentes econômicos superavitários (que possuem capital sobrando), realizando, assim, a intermediação financeira. Com isso, os recursos que sobrassem dos superavitários puderam ser utilizados pelos agentes deficitários, proporcionando a circulação monetária e permitindo a transformação da poupança em investimento, facilitando a produção de bens e serviços mediante o abastecimento de recursos aos produtores e fabricantes, tornando viáveis o crescimento e o desenvolvimento econômico.18

Com efeito, os bancos fazem parte da política monetária do país, na medida em que usam como referencial para estipular sua a taxa de juros (a taxa de juros de mercado) aPage 73 taxa de juros básica, estipulada por um órgão do Estado – o Comitê de Política Monetária (COPOM), junto ao Banco Central.19

A taxa de juros básica, como ressalta o Ministro Nelson Jobim, é um instrumento utilizado para definir a política monetária do país. Com ela, decide-se mediante uma escolha de Governo se haverá crescimento econômico acelerado (taxas de juros reduzidas) ou controle inflacionário rígido (taxas de juros elevadas). Cabe ao Governo encontrar o ponto de equilíbrio: uma taxa de juros que sustente um controle inflacionário e que permita um crescimento sustentável da economia.20

Nessa perspectiva, a taxa de juros de mercado não leva em conta as relações pessoais (clientes e banco), mas uma relação de perspectiva objetiva-institucional, que coloca percentuais para a cobrança do valor estipulado, tais como contingências, custos operacionais, risco, lucro e o custo de oportunidade (custo alternativo de investir o capital em qualquer outro negócio). A partir daqui, é necessário analisar o Spread bancário.

Spread bancário constitui-se na diferença entre as taxas de empréstimo praticadas pelos agentes financeiros em relação aos tomadores de crédito e a taxa de captação dessas instituições financeiras, refletindo o custo operacional dos agentes financeiros, o lucro e o risco (a taxa média de inadimplência), visando, assim, cobrir as despesas das operações de intermediação financeira, proporcionando uma margem líquida para o intermediário financeiro.21

Nesse contexto, o jornal...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT