Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial

AutorCarlos Lacerda Barata
Páginas124-193

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Ver Nota1

Excertos

“O contrato celebrado fora do estabelecimento comercial não constitui, em sentido próprio, um tipo ou subtipo contratual, mas, simplesmente, uma (sub-)categoria contratual”

“A diretiva visou estabelecer normas-padrão para os aspectos comuns aos contratos celebrados à distância e aos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial, afastando-se do princípio de harmonização mínima subjacente às diretivas anteriores”

“A informação ao consumidor assume um papel absolutamente essencial nos contratos de consumo, correspondendo, aliás, a um dos temas centrais em matéria de proteção dos consumidores, a par do direito de livre desvinculação”

“O incumprimento do dever de informação, a cargo do profissional, acarreta, naturalmente, consequências desfavoráveis para este, inclusive ao nível contra-ordenacional, com a correspondente aplicação de coimas”

“O exercício do direito de livre desvinculação não prejudica o direito do consumidor de inspecionar e manipular os bens recebidos”

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I - Introdução
1. Contratação fora do estabelecimento comercial e tutela do consumidor

I. Os processos de contratação que envolvem o consumidor2justificam a presença de um conjunto de regras e de princípios tendentes a assegurar, com eficácia, a sua proteção3; assim sucede, nomeadamente, quando ele assume o papel de adquirente de bens ou de serviços, em virtude da celebração dos respectivos contratos, tendo como contraparte um fornecedor de bens ou prestador de serviços, que atue no âmbito da sua atividade profissional4.

Isto mesmo se passa, com fundadas razões, em diversas modalidades e esquemas de formação contratual; é o caso, designadamente, dos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial (abrangendo os concluídos no domicílio do consumidor e em situações equiparadas)5.

Nesta situação, a perspectivação do consumidor como parte mais fraca6no processo contratual – logo, merecedora de uma especial tutela, enquanto contraente débil, parte numa relação assimétrica7– resulta, essencialmente, dos seguintes fatores:

(i) em regra, a iniciativa ou o impulso negocial não pertence ao consumidor, mas ao vendedor ou fornecedor8: é este que aborda – muitas vezes, insistentemente9– o consumidor (que, normalmente, nada solicitou), no local onde este se encontre, maxime no domicílio10;

(ii) existe, em regra, uma menor liberdade de escolha, por parte do consumidor, que, apanhado desprevenido11, não tem possibilidade de comparar preços, características do bem objeto do contrato12, condições contratuais13;

(iii) o fator surpresa14provoca (ou agrava) o desequilíbrio entre as partes: o “encontro imediato” com um profissional de vendas ou de fornecimento de serviços – com frequência, especialmente treinado15, hábil16, experiente na sua “agressividade” e persuasivo17– acarreta, geralmente, um menor grau de reflexão por parte do consumidor;

(iv) a pressão psicológica18, provocada pela presença física do vendedor/fornecedor, que, amiúde, surge inesperadamente, por exemplo, no domicílio do consumidor, induzindo-o a adquirir determinado bem ou serviço, leva muitas vezes – a prática demonstra-o e

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a doutrina salienta-o19– a contratações irrefletidas, não adequadamente ponderadas ou não desejadas: muitas vezes, o consumidor, pura e simplesmente, não consegue dizer não20.

Todavia, paralelamente, este “tipo” de contratação – há muito utilizado e sobejamente conhecido na prática comercial21– envolve inequívocas vantagens, inclusivamente para o próprio consumidor, em especial no que toca à celeridade e à comodidade: o consumidor pode adquirir bens ou serviços, designadamente, no seu próprio domicílio ou local de trabalho, sem os inconvenientes próprios das deslocações22.

  1. Contudo, como se disse, a contratação fora do estabelecimento comercial representa um claro exemplo da necessidade de acrescida tutela do contraente mais débil23, já que, reconhecidamente, se trata de uma prática comercial agressiva24(ou, até, insidiosa25).

    Os tradicionais esquemas de direito civil – maxime os regimes dos vícios da vontade, em especial o do erro, simples ou qualificado por dolo (artigos 251º e seguintes do Código Civil), do negócio usurário (artigos 282º ss) ou da culpa in contrahendo (artigo 227º) – ou (quando aplicável) a tutela conferida pelas regras que regem a contratação com recurso a cláusulas contratuais gerais26, se bem que também potencialmente aplicáveis, mostram-se incapazes de dar resposta (suficientemente) eficaz a novos problemas27, entre os quais se incluem, precisamente, os suscitados pelos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial, o que explica e justifica plenamente a adoção de regimes normativos especiais – frequentemente, gizados no âmbito do direito comunitário e implementados no direito interno – tendentes à tutela do contraente-consumidor, neste esquema de contratação.

  2. O contrato celebrado fora do estabelecimento comercial, quanto à sua constituição, reconduz-se, fundamentalmente, ao modelo paradigmático (proposta + aceitação), acolhido no Código Civil28, embora com particularidades, decorrentes de circunstâncias ambientais (relativas ao lugar da negociação ou da celebração)29, que envolvem a formação30do contrato, tendo como pano de fundo uma relação de consumo31, o que explica a sua submissão a um conjunto de regras especiais, que acresce ao regime base de formação32, sem, todavia, o desvirtuar ou afastar33.

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    IV. Por outro lado, o contrato celebrado fora do estabelecimento comercial não constitui, em sentido próprio, um tipo ou subtipo contratual34, mas, simplesmente, uma (sub-)categoria contratual35. Mais: a sua identificação e a aplicabilidade das respectivas regras legais, em princípio, não dependem da consideração do tipo de contrato que, em concreto, esteja em causa, que se poderá reconduzir às mais diversas espécies (compra e venda, locação, prestação de serviços etc.); nesta medida, o quadro legal dos contratos celebrados fora do estabelecimento corresponde, na expressão de Roppo, a um regime “transtípico ou metatípico36.

II - Contratos celebrados fora do estabelecimento no direito positivo
2. Fontes normativas específicas
2. 1 Antecedentes normativos comunitários e internos

I. Na vigência da anterior lei de defesa do consumidor (Lei 29/81, de 22 de agosto) e perante a necessidade de transposição da Diretiva 85/577/CEE, de 20 de dezembro de 1985, relativa à proteção dos consumidores (apenas) nos contratos celebrados fora do estabelecimento37, o legislador português tomou a iniciativa de aprovar e fazer publicar o Decreto-Lei 272/87, de 3 de julho, através do qual foram regulados, no mesmo diploma legal, essencialmente, três aspectos diferentes: vendas ao domicílio, vendas por correspondência e vendas em cadeia e forçadas38.

As vendas ao domicílio eram objeto do capítulo I do Decreto-Lei de 1987 (1º a 7º), enquanto às vendas por correspondência era dedicado o capítulo II, composto por cinco artigos (8º a 12º), ficando o capítulo III reservado para as vendas em cadeia e as vendas forçadas, bem como para o envio de produtos não encomendados ou solicitados (13º a 15º). O Decreto-Lei 272/87 veio a ser objeto de alterações pontuais, ditadas pelo Decreto-Lei 243/95, de 13 de setembro39.

Nos termos do artigo 1º/1, considerava-se «venda ao domicílio a modalidade de distribuição comercial a retalho em que o contrato, tendo por objeto bens ou serviços, é proposto e concluído no domicílio

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do consumidor, pelo vendedor ou seus representantes, sem que tenha havido prévio pedido expresso por parte do mesmo consumidor»; o número 2 da mesma disposição, nas suas três alíneas, procedia à equiparação de outras situações: vendas no local de trabalho, vendas no domicílio de outro consumidor, vendas em deslocações organizadas pelo vendedor fora do seu estabelecimento comercial.

  1. Uma década depois, surgiu a Diretiva 97/7/CE, do Parlamento e do Conselho, de 20 de maio de 1997, relativa à proteção dos consumidores em matéria de contratos à distância40. Impunha-se nova transposição para os direitos internos dos Estados-membros41.

    O legislador nacional optou, então, pela seguinte solução, alcançada através do Decreto-Lei 143/2001, de 26 de abril42: concentrou, num só diploma, a regulamentação legal de várias figuras (entre as quais os contratos à distância – 2º a 12º – e os contratos ao domicílio e equiparados – 13º a 20º), revogando, expressamente (artigo 37º do Decreto-Lei 143/2001) o Decreto-Lei 272/87.

    O Decreto-Lei 143/2001 foi objeto de três alterações43: primeiramente, ditadas pelo Decreto-Lei 57/2008, de 26 de março, que consagrou um novo regime para as práticas comerciais desleais44; passados menos de dois meses, o Decreto-Lei 82/2008, de 20 de maio, veio introduzir novas modificações em múltiplas disposições do diploma de 200145, o que justificou a sua republicação em anexo; finalmente, o Decreto-lei 317/2009, de 30 de outubro (serviços de pagamento), veio alterar, mais uma vez, o regime instituído pelo Decreto-Lei 143/200146.

  2. Na sua última versão, o Decreto-Lei 143/2001 continha diversas disposições especificamente dedicadas aos contratos negociados fora do estabelecimento comercial, que integravam o capítulo III deste diploma legal, cuja sistemática recordamos:

    Cap...

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