Os contratos conexos e sua interpretação

AutorFrancisco Rosito
Páginas85-106

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1. Introdução

Na clássica teoria contratual, para atender aos seus interesses, as partes recorriam, em regra, à pactuação de um contrato isolado, independente e autônomo, à medida que planejavam uma transação separada de todas as transações a ela anteriores, contemporâneas ou subseqüentes. Tratava-se, em regra, de contratos típicos e comutativos, havendo justaposição entre obrigação e direito.

No entanto, a industrialização, o desenvolvimento tecnológico e as muitas outras conquistas da sociedade moderna intensificaram a complexidade das relações sociais e econômicas, aumentando substancialmente o emprego e a importância dos contratos atípicos, a ponto de se poder dizer que o mundo negocial moderno cresceu, desenvolveu-se e atualmente vive a partir da criação livre dos acordos negociais.

À medida que o trânsito de riquezas se acentuou ainda mais, multiplicando-se as necessidades dos indivíduos, sobretudo a partir da metade do último século, passou-se a observar não somente o fenômeno da combinação de prestações e elementos contratuais diversos em apenas um contrato, como também a celebração de dois ou mais contratos unidos por um vínculo. Surgem, assim, as "novas perspectivas do direito dos contratos", contexto em que se inserem os contratos conexos ou coligados, cuja união representa um meio para satisfação de um interesse que não pode satisfazer-se normalmente através das figuras típicas existentes, senão através da reunião de diferentes contratos.

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Assim, infere-se que os contratos conexos diferenciam-se dos contratos mistos ou complexos, que nascem da combinação de distintos esquemas negociais, nos quais há uma unidade de causa, dependente de um único objetivo. Desse modo, tem-se apenas um contrato, decorrente da fusão de elementos de distintos contratos. Logo, o fator determinante para estabelecer o regramento do negócio jurídico reside na identificação do interesse predominante que moveu as partes a contratar. Já em relação aos contratos conexos há indiscutivelmente uma pluralidade de contratos, cada um com sua própria causa, tendo em comum a finalidade de atender a uma causa econômica ulterior.1

Outrossim, os contratos conexos não se confundem com os contratos relacionais e tampouco com as redes contratuais, embora todos representem formas hodiernas de contratação.

Os contratos relacionais ou contratos cativos de longa duração2 são aqueles que estabelecem e/ou regulam uma relação de longo prazo entre as partes, em geral preservando uma determinada flexibilidade, para que as partes possam ajustar sua relação, tal como preço, quantidade, qualidade etc., à medida que as novas circunstâncias e o passar do tempo assim o recomendam.3

Diferentemente dos contratos conexos, um contrato relacional pode, entretanto, ter existência individual e autônoma, não exigindo a celebração de outros contratos a ele vinculados. É o que ocorre, ilustrativamente, com a celebração de um contrato de assistência à saúde, uma relação de longo prazo em potencial. Nesses casos, pelas características que lhe são próprias, o contrato relacional suscita questões muito peculiares, como a regra que veda a resili-ção unilateral injustificada pelo prestador de serviço, mesmo quando genericamente autorizada pelo contrato.

Os contratos conexos também não se confundem com as redes contratuais,4 que constituem um fenômeno de integração contratual, no qual as partes buscam atender a um interesse associativo mediante um contrato de integração total ou parcial (sociedade, união transitória de empresas,

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agrupações de empresas, tais como as redes de concessionárias, de supermercados etc.). Por sua vez, nos contratos conexos também há um interesse associativo, cuja satisfação não está na integração mediante um contrato, senão na busca de uma causa econômica que faz com que uma série de vínculos individuais deva funcionar como um sistema. Logo, percebe-se que o interesse na integração é intracontratual, ao passo que na conexão é supracontratual, situando-se além dos contratos individuais, no plano da finalidade perseguida,5 conforme restará destacado.

Apresentadas essas considerações gerais, destaca-se que o presente ensaio apresentará, na primeira parte, um perfil dogmático dos contratos conexos, absolutamente necessário para a correta interpretação do fenômeno, examinando-se as diferentes formas de conexão de contratos atípicos e típicos e os elementos dos contratos conexos voluntários ou funcionais. Na segunda parte será abordada a interpretação como elemento determinante dos contratos conexos, nas dimensões sub-jetiva e objetiva, bem como as regras in-terpretativas aplicáveis em face da teoria sistêmica. Ao fim, apresentaremos breves conclusões.

2. O perfil dogmático dos contratos conexos

A doutrina não utiliza uma terminologia uniforme aos contratos em questão. A doutrina italiana, que foi uma das primeiras a tratar das peculiaridades do fenômeno, adotou a terminologia da coligação contratual, sob a expressão contratti col-legati ou negozzi collegati.6 A doutrina portuguesa, no entanto, preferiu utilizar a expressão "união de contratos",7 a qual é também utilizada na França (les grou-pes de contrats8). No direito da Common Law adota-se a expressão linked contracts ou contract network.9 Já na Espanha10 e na Argentina11 emprega-se comumente a expressão "contratos conexos". Por fim, no Brasil utilizam-se indistintamente as expressões "contratos conexos", "contratos coligados" e "grupos de contratos".12

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Particularmente, prefiro a expressão "contratos conexos", por ser a mais difundida no Direito Comparado, embora reconheça que o termo "coligação" seja até mais predominante no Direito Brasileiro. Também o faço por questão de aproximação idiomática, pois o termo "conexo" é tido por "originado de uma correlação", que, por seu turno, remete à noção de "idéias relacionadas entre si" ou "interdependência de duas ou mais variáveis", o que se mostra adequado ao fenômeno em questão.13

Em termos conceituais, os autores têm tratado o tema dos contratos conexos apontando que existe uma pluralidade coordenada de contratos. A cada um dos quais corresponde uma causa autônoma, ainda quando em conjunto tendam à realização de uma operação unitária e complexa.14

Na Argentina, especialmente na última década, o fenômeno dos contratos conexos vem sendo objeto de amplo estudo, destacando-se o magistério de Jorge Mosset Iturraspe15 e Ricardo Luis Lorenzetti,16 este que inclusive publicou no Brasil alguns de seus importantes trabalhos sobre o tema. Em virtude desse estudo, na VI Jornada Nacional de Derecho Civil foi proposta definição apropriada ao tema: "Concepto:

Habrá contratos conexos cuando para la realización de un negocio único se celebra, entre las mismas partes o partes diferentes, una pluralidad de contratos, vinculados entre sí, a través de una finalidad económica supracontratual. Dicha finalidad puede ve-rificarse jurídicamente, en la causa subje-tiva u objetiva, en el consentimento, en el objeto, o en las bases del negocio".17

Por sua vez, Ana López Frías identifica o fenômeno da conexão contratual "cuando varios sujetos celebran dos o más contratos distintos que presentan una estre-cha vinculación funcional entre sí porrazón de su propia naturaleza o de la finalidad global que los informa, vinculación que es o puede ser jurídicamente relevante".18

Trata-se de definições adequadas, englobando tanto os elementos indispensáveis como a causa determinante do fenômeno.

2. 1 As formas de conexão

Em uma primeira aproximação, a expressão "conexão contratual" sugere a idéia de nexo ou vínculo entre dois ou mais contratos. Esse nexo pode ser meramente casual ou ocasional, pode ser necessário, caso decorra da natureza intrínseca dos contratos ou da lei, ou pode ser voluntário ou funcional, caso decorra vontade dos contratantes.19

Trata-se de contratos distintos que conservam, cada um, suas próprias causa e disciplina, mas que são coordenados um pelo outro para a melhor atuação da unitária operação econômica, aspecto que os diferencia dos contratos mistos ou complexos.

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2.1. 1 A conexão ocasional

A conexão ocasional, na terminologia italiana, é irrelevante para o ordenamento jurídico, sendo conceitualmente estranha ao tema em questão. Isso porque representa a pluralidade de contratos que estão unidos pelo mero acaso, não havendo um nexo lastreado na vontade das partes ou em um fim comum a ser perseguido. A conexão ocasional ocorre entre contratos que mantêm sua completa independência, embora possam ter partes em comum ou alguns elementos extrínsecos semelhantes, tais como o tempo e a forma.20

No Direito Brasileiro fala-se também em "união meramente externa", quando dois ou mais contratos perfeitamente individualizados, estrutural ou funcionalmente, se encontram unidos no mesmo instrumento contratual, relacionando-se, portanto, somente...

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