Contratos no ambiente familiar

AutorMaria Celina Bodin de Moraes e Ana Carolina Brochado Teixeira
Páginas9-26
CONTRATOS NO AMBIENTE FAMILIAR
Maria Celina Bodin de Moraes
Doutora em Direito Civil pela Università degli studi di Camerino, Itália. Professora
Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e Professora Associada do
Departamento de Direito da PUC-Rio. Editora-chefe da Civilistica.com – Revista Ele-
trônica de Direito Civil. Advogada, árbitra e parecerista.
Ana Carolina Brochado Teixeira
Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC Minas.
Especialista em Direito Civil pela Scuola di diritto civile – Camerino, Itália. Professora
do Centro Universitário UNA. Coordenadora Editorial da Revista Brasileira de Direito
Civil – RBDCivil. Advogada.
Sumário: 1. A privatização da família e o Direito mínimo das Famílias – 2. Áreas sujeitas à
negociabilidade – 3. Zonas imunes à contratualização – 4. Acenos para o futuro – 5. Notas
conclusivas – 6. Referências.
1. A PRIVATIZAÇÃO DA FAMÍLIA E O DIREITO MÍNIMO DAS FAMÍLIAS
No âmbito do Estado Democrático de Direito, as escolhas existenciais ganham
cada vez mais espaço, na medida em que a pessoa humana passou a ocupar posição de
centralidade no sistema jurídico. A constitucionalização e a personalização do direito
civil atribuíram especial relevo às decisões existenciais, já que as situações jurídicas
de qualquer natureza devem ser funcionalizadas à realização da pessoa humana.
Algumas questões sempre foram consideradas de ordem pública, sendo a família,
uma delas: a proibição do divórcio no Brasil é um exemplo que demonstra a severa
intervenção do Estado na vida privada familiar, revelando que a permanência da
instituição tem mais valor do que as escolhas e a felicidade de seus membros. Essa
visão precisou ser superada tanto em razão das modificações nas relações humanas
que, progressivamente foram acontecendo, quanto das transformações jurídicas,
principalmente em razão do advento da Constituição Federal.
O Texto Constitucional tem como um de seus pilares o pluralismo jurídico,
que acolhe – posto que entende legítimos – os mais diversos projetos de vida autor-
referentes, desde que não fira interesses de terceiros. Por isso, no âmbito da família,
são válidas as mais diversas manifestações que projetam a autonomia privada nas
escolhas familiares, pois são as preferências mais íntimas que podem potencializar
a realização da humanidade de cada um. Por isso, o tipo de família a ser constituída,
a manutenção ou não de um casamento ou de uma união estável, a forma em que o
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MARIA CELINA BODIN DE MORAES E ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA
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casal conduz a vida conjugal são alguns exemplos que ilustram possibilidades exis-
tenciais com vistas à busca da construção da felicidade.
É nesse sentido que o conceito de ordem pública também se transformou: a cons-
titucionalização do direito civil, com o deslocamento dos princípios fundamentais
do Código Civil para a Constituição Federal, acarretou grande mudança, na medida
em que a autonomia privada passou a gerar efeitos jurídicos não apenas em situações
patrimoniais, mas também, existenciais, sendo redefinida por esses valores. Assim,
a concepção de ordem pública – permeável a esses novos fatos jurídicos – passou a
ter a realização da pessoa humana como objetivo, já que sua dignidade foi elevada a
princípio fundamental da República.
Seu alcance foi relativizado, na passagem da ideologia do Estado Social para o
Estado Democrático de Direito, tendo em vista que as fronteiras entre o público e
o privado foram flexibilizadas. Daniel Sarmento critica esse princípio, pois ele “ba-
seia-se numa compreensão equivocada da relação entre pessoa humana e Estado,
francamente incompatível com o leitmotiv do Estado Democrático de Direito, de
que as pessoas não existem para servir aos poderes públicos ou à sociedade política,
mas, ao contrário, estes é que se justificam como meios para a proteção e promoção
dos direitos humanos”.1
Em uma sociedade plural e multifacetada chancelada pela atual Constituição
Federal, é possível que a pessoa planeje sua vida de forma autônoma sem, no entanto,
agredir direitos alheios, de uma ou de várias pessoas. Seus atos de liberdade devem
limitar-se ao espaço pessoal, ao respeito à alteridade e à solidariedade. Contudo, em
razão dessa mesma solidariedade, deve-se assegurar que o Estado respeite e promova
a realização dos direitos fundamentais segundo os projetos autônomos de vida, para
que a ordem pública também possa se realizar, ou seja, “para um Estado que tem como
tarefa mais fundamental, por imperativo constitucional, a proteção e promoção dos
direitos fundamentais dos seus cidadãos, a garantia destes direitos torna-se também
um autêntico interesse público”.2 A ordem pública, em síntese, pode ser redefinida
a partir do interesse do ordenamento na tutela e desenvolvimento da personalidade.
Para corroborar a acolhida de todos os projetos familiares, mediante essa nova
concepção de ordem pública, o art. 1.511 do Código Civil estabelece que o casa-
mento constitui uma comunhão plena de vida entre os cônjuges, cabendo a esses
construir esse conceito de acordo com a arquitetura familiar e pessoal que têm para
si, ou seja, não cabe ao Estado definir as regras principais do casamento – e, por via
de consequência, da união estável – já que cada um tem uma maneira diferente de
realização. Além disso, o art. 1.513 do Código Civil afirma que nenhuma pessoa
1. SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia
constitucional. In: SARMENTO, Daniel (Org.) Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo
o princípio da supremacia do interesse público. 2. tir. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007, p. 27.
2. SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia
constitucional. In: SARMENTO, Daniel (Org.) Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo
o princípio da supremacia do interesse público. 2. tir. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007, p. 83.
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