Mutação constitucional do controle difuso no Brasil? Uma análise do papel do Senado Federal diante do art. 52, X, da Constituição

AutorCarlos Victor Nascimento dos Santos
Páginas151-202
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, a ordem constitucional brasileira vem sofrendo grandes
transformações em sua estrutura, tanto em termos textuais, quanto na inter-
pretação do texto constitucional, sobretudo com as mudanças de composição
pelas quais o Supremo Tribunal Federal (STF) vem passando na última década.
O Supremo Tribunal Federal vem se fortalecendo enormemente em nosso país,
tanto como intérprete da Constituição, quanto como protetor dos direitos e
garantias fundamentais, estando em constante evidência no cenário político
brasileiro. Trata-se de um momento cada vez mais propício ao lançamento, por
parte do STF, das mais variadas e ousadas teses jurídicas e novos entendimentos
sobre o direito constitucional brasileiro, como a transcendência dos motivos de-
terminantes da decisão proferida em sede de controle difuso (Rcl. 2.986 MC/
SE, Rel. Min. Celso de Mello), por exemplo.
Por um lado, há que se ressaltar que essas teses transformadoras surgem
devido à complexidade de nosso sistema jurídico e das transformações sociais,
que se tornam cada vez mais constantes. Por outro, toda transformação do
direito feita por interpretação judicial, ainda que pelo Supremo Tribunal, deve
ser discutida, por ser um mecanismo de mudança jurídica feita por órgãos não
legislativos. São com essas preocupações em mente que o presente estudo fará a
análise crítica de um dos principais argumentos responsáveis por fundamentar
uma dessas teses inovadoras e que muito tem repercutido na ordem jurídica
nacional: a mutação constitucional. O referido fenômeno é um dos principais
argumentos ao processo, denominado por Fredie Didier Jr., no artigo “Trans-
formações do Recurso Extraordinário”, de “abstrativização do controle difuso
de constitucionalidade”.
Por ela deve-se entender a possibilidade de atribuição de efeitos erga omnes
e vinculante às decisões proferidas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal,
em sede de controle difuso, independente da edição de súmula vinculante a res-
peito ou da expedição de resolução do Senado Federal suspendendo a e cácia
III. Mutação constitucional do controle difuso no Brasil?
Uma análise do papel do Senado Federal
diante do art. 52, X, da Constituição
CARLOS VICTOR NASCIMENTO DOS SANTOS
152 COLEÇÃO JOVEM JURISTA
da lei ou ato normativo declarado inconstitucional, no uso da competência que
Insta destacar que a ousada tese jurídica mencionada é defendida pelo
Min. Gilmar Mendes em voto proferido nos autos da Recl. 4335-5/AC, sob a
argumentação de necessidade de reconhecimento de autêntica mutação cons-
titucional do art. 52, X, da Constituição Federal. Para o Ministro, o referido
dispositivo tem, atualmente, sentido de apenas atribuir publicidade às decisões
proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em se tratando de controle difuso.
Por consequência, haveria uma aproximação das diferentes espécies de controle
de constitucionalidade existentes no sistema brasileiro: difuso e abstrato, per-
mitindo, então, que, de acordo com a tese defendida pelo Ministro Gilmar, as
decisões proferidas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, mesmo em se
tratando de controle difuso de constitucionalidade, sejam dotadas de efeitos
erga omnes e vinculantes.
Nesse sentido, o tema deste trabalho tem como objetivo explicitar as con-
dições necessárias à con guração de um argumento, como a mutação consti-
tucional, para que seja considerado plausível na ordem jurídica brasileira. A
partir da contextualização do tema e da análise do caso paradigmático – voto
do Min. Gilmar Mendes nos autos da Reclamação 4335-5/AC, ainda pendente
de julgamento –, serão discutidas tanto a argumentação do Ministro Gilmar
Mendes, quanto as suas implicações no cenário jurídico brasileiro. Será dado
destaque ao argumento da mutação constitucional, utilizado pelo Ministro Gil-
mar ao fundamentar a sua tese jurídica nos autos da Recl. 4335-5/AC, ao qual
afeta diretamente o controle de constitucionalidade no Brasil e a estrutura de
separação de poderes.
Isso porque, no caso a ser analisado, o Ministro Gilmar Mendes lança
argumentos no sentido de já existirem mudanças relacionadas principalmente
com a competência do Senado Federal frente ao controle difuso de constitu-
cionalidade. Assim, sua posição se apresenta como sendo tão somente o reco-
nhecimento de tais mudanças, que delimitam o âmbito de atuação do Senado
no controle difuso. A esse fenômeno, o Min. Gilmar Mendes atribui nome de
mutação constitucional.
Tendo em vista o impacto da referida tese jurídica, será feita uma recons-
trução do conceito de mutação constitucional e uma análise das diferenças en-
tre esse fenômeno e o de uma simples reforma da Constituição. Tal discussão
conceitual, a partir das premissas do voto do Ministro Gilmar Mendes, será
fundamental para esclarecer se o entendimento do Ministro será su ciente para
reconhecer a ocorrência de uma autêntica mutação constitucional. Principal-
MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO CONTROLE DIFUSO NO BRASIL? 153
mente se considerarmos que a mutação pode se revelar como uma tentativa
de mudança da Constituição sem a a rmativa clara e direta da postura que se
está adotando, ou como o que alguns autores, como Ana Cândida Ferraz, em
“Processos Informais de Mudança da Constituição: mutações constitucionais e
mutações inconstitucionais”, chamadas também de “mudanças silenciosas”. Tal
fenômeno apenas “reconhece” um fato consumado, demonstrando ser algo que
pode ser usado por tribunais para disfarçar como mera observação da realidade
algo que, na verdade, é uma transformação dessa realidade de acordo com as
suas preferências.
Veri cadas as premissas do voto do Min. Gilmar Mendes, uma discussão
empírica será apresentada com a aplicação dos conceitos já discutidos em capí-
tulo anterior. O objetivo da análise de tais elementos empíricos será auxiliar na
apreciação da solidez dos argumentos sustentados pelo Ministro Gilmar Men-
des na defesa de sua tese jurídica da “mutação constitucional” do artigo 52, X,
da Constituição. A metodologia utilizada para a construção de tais dados será
apresentada mais adiante, em capítulo próprio. Neste capítulo, será feita análise
em relação à competência e atuação do Senado Federal no controle de consti-
tucionalidade brasileiro.
Por  m, tentar-se-á mostrar como os Ministros do Supremo Tribunal Fe-
deral utilizam o seu poder de interpretar a Constituição para, por meio de ju-
risprudência e argumentação tipicamente constitucional, acabar na prática por
alterar as estruturas do controle de constitucionalidade. E, sendo o controle de
constitucionalidade a forma mais importante de exercício de poder do Judiciá-
rio sobre os outros poderes, qualquer transformação nessas estruturas pode vir
a ser uma mudança na separação de poderes no Brasil.
1–COMPREENDENDO O EVENTO JURÍDICO A SER ESTUDADO
1.1 – Descrição do caso paradigmático
Em 2006, foi julgado um Habeas Corpus impetrado pelo paciente Oséas
de Campos perante o Supremo Tribunal Federal1 requerendo uma mudança
de entendimento dessa Corte em relação à vedação à progressão de regimes em
crimes hediondos. Sob a argumentação de que violaria a garantia do preso da
1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 82.959-7. Paciente: Oséas de Campos. Coator:
Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Marco Aurélio. Plenário. São Paulo, 23 de fevereiro de
2006. Informativo 418, 2006.

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