A controversa definição jurídica do refúgio: reflexões sobre conceitos positivados e interpretação contemporânea

AutorHenrique Gentil Oliveira
CargoProcurador da República do Ministério Público Federal
Páginas101-118
OLIVEIRA, H. G. 101
Rev. Ciênc. Juríd. Soc. UNIPAR, v. 20, n. 1, p. 101-118, jan./jun. 2017
A CONTROVERSA DEFINIÇÃO JURÍDICA DO REFÚGIO:
REFLEXÕES SOBRE CONCEITOS POSITIVADOS E
INTERPRETAÇÃO CONTEMPORÂNEA
Henrique Gentil Oliveira1
OLIVEIRA, H. G. A controversa denição jurídica do refúgio: reexões sobre
conceitos positivados e interpretação contemporânea. Rev. Ciênc. Juríd. Soc.
UNIPAR. Umuarama. v. 20, n. 1, p. 101-118. jan./jun. 2017.
RESUMO: O conceito originário de refugiado foi delimitado pelo artigo 1° da
Convenção de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de modo conscien-
temente insuciente, e tal delimitação formal ainda perdura no sistema global
de proteção aos direitos humanos. A aplicação sem temperamentos do instituto
pode ensejar agrantes injustiças, na medida em que a letra fria da convenção
não contempla a realidade da maior parte dos deslocados do século XXI. O ar-
tigo analisará detidamente tal denição, contrastando-a com as veiculadas em
outros instrumentos e propondo modo de interpretação para contextualizá-la aos
problemas atuais.
PALAVRAS-CHAVE: Denição; Direitos humanos; Interpretação; Refúgio.
1 INTRODUÇÃO
Após a virada do milênio, o mundo assistiu a súbita ampliação do nú-
mero de pessoas deslocadas. Conitos e desastres na Síria, Afeganistão, Haiti,
Sudão, Somália, Nigéria, Angola, Congo e Colômbia impulsionaram o total dos
que se viram forçados a abandonarem suas pátrias para o patamar de 60 milhões2,
maior cifra contabilizada desde a Segunda Guerra, instalando uma crise sem pre-
cedentes na Idade Contemporânea.
Nos três últimos anos, a encruzilhada foi ampliada com o crescente
quantitativo de sírios que buscam entrar no continente europeu por seu Leste
e dos nigerianos que avançam para o vizinho Chade, fugindo das atrocidades
cometidas pela organização terrorista Boko Haram. O panorama desaa os mem-
bros das Nações Unidas a anarem seu diálogo político, sendo pouquíssimos
os Estados que se dispõem a hospedarem refugiados massivamente, merecendo
referência inicialmente positiva a Turquia, o Paquistão, a Jordânia e o Quênia.
DOI: 10.25110/rcjs.v20i1.2017.6735
1Procurador da República do Ministério Público Federal.
2Relatório do ACNUR publicado em 18 de junho de 2015. Disponível em
t3/portugues/recursos/estatisticas/dados-sobre-refugio-no-brasil/> . Acesso em: 11 de maio de 2016.
A controversa denição jurídica...
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Rev. Ciênc. Juríd. Soc. UNIPAR, v. 20, n. 1, p. 101-118, jan./jun. 2017
Para os deslocados, a perspectiva atual é de absoluto desalento. A ima-
gem emblemática da crise, que despertou o mundo para a problemática - a foto
do corpo de Alan Kurdi, menino de três anos, prostrado nas areias frias de uma
praia turca -, ilustra como nenhuma outra a indiferença que lhes é comumente
reservada na busca por uma vida melhor.
A política das Organizações Unidas para os refugiados está longe de ter
um desfecho exitoso. E, se para conferir tal status aos deslocados, os Estados
utilizarem friamente o conceito clássico de refugiado pela Convenção de 1951
Relativa ao Estatuto dos Refugiados, o fracasso será certo, pois a maior parte dos
que atualmente integram uxo migratório não se enquadram naquela denição.
E, assim sendo, estarão alheios ao correspondente conjunto de regras protetivas,
inclusive não se lhes aplicando o princípio do non-refoulement.
O conceito de refúgio está em pauta, e a adequada acepção da extensão
do instituto pode fazer a diferença na vida de milhões de pessoas.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 ALGUNS ASPECTOS HISTÓRICOS RELEVANTES DO REFÚGIO
A migração é um traço marcante do comportamento humano desde
sempre. O desejo de mudar é companheiro constante de nossa espécie, seja para
buscar sobrevivência em outros pontos do globo, incrementar a qualidade de
vida, colonizar novos territórios, explorar fronteiras, ampliar os horizontes cien-
tícos, acumular riquezas, conquistar novos povos para, posteriormente explorá-
-los, tracar escravos, prestar socorro humanitário, transportar drogas e armas,
ou seja, simplesmente, para realizar atividades de cultura e lazer.
O traslado forçado de grupos de pessoas que, por determinado moti-
vo, se identicam entre si e a necessidade de conferir proteção a elas em terras
desconhecidas também não são novidades. Sobre a ocorrência do fenômeno em
épocas remotas, versa Barreto (2003, p. 201):
O refúgio é tão antigo quanto a humanidade. Em princípio, bene-
ciava criminosos comuns, já que eventual proteção a dissidentes po-
líticos de regimes imperialistas constituiria ato de afronta entre as
Nações. Os crimes políticos eram considerados mais graves do que
os comuns, já que consistiam em atos contrários aos regimes e aos
soberanos.
Na Idade Média, do século XIII ao XV, em virtude da ampliação eu-
ropeia do reino unicado de Castela e Aragão, o povo judeu foi expulso da In-
glaterra, da França, da Espanha e de Portugal, assentando-se em outros países

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