Sociedades cooperativas e práticas restritivas à concorrência

AutorMarco Aurélio Gumieri Valério
Páginas90-109

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"No contexto das importantes transformações em curso no mundo da economia e do trabalho, os fiéis leigos empenham-se em primeira linha na solução dos gravíssimos problemas do crescente desemprego, lutando em favor de uma mais rápida superação das numerosas injustiças que provêm de deficientes organizações do trabalho, transformando o lugar de trabalho numa comunidade de pessoas respeitadas pela sua subjetividade e no seu direito à participação, desenvolvendo novas formas de solidariedade entre aqueles que tomam parte no trabalho comum, fomentando novos tipos de empresariado e revendo os sistemas de comércio, de fiança e de intercâmbios tecnológicos"

(Papa João Paulo II. "Exortação apostólica pós-sinodal christifideles laici sobre vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo", disponível em http://www.vatican.va, acesso em 23.4.2007).

Introdução

A defesa da concorrência não é um fim em si mesmo, mas um meio pelo qual se busca criar uma economia eficiente, na qual o consumidor disponha da maior variedade de produtos pelos menores preços possíveis. Assim, toda a coletividade desfruta do bem-estar gerado.

Uma economia forte e competitiva é condição essencial para o desenvolvimento sustentável em longo prazo, haja vista o fato de ser nesse ambiente que os agentes econômicos se deparam com incentivos adequados para aumentar a produtividade e introduzir novos e melhores produtos e serviços no mercado. Contribui, destarte, com a geração do tão desejado "espetáculo do crescimento econômico".1

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No Brasil, ainda que a legislação inicial sobre a matéria remonte aos idos dos anos 1960, apenas ao longo dos últimos quinze anos o antitruste assumiu caráter prioritário no contexto das políticas públicas.2

Em razão da conjugação de fatores inibidores advindos da forte intervenção estatal, a exemplo do fechamento do mercado a produtos estrangeiros, da manutenção de mecanismos de controle de preços e dos altos índices inflacionários - características que marcaram a heterodoxa economia nacional ao longo dos tempos - a defesa da concorrência não era tarefa verdadeiramente factível.

Contudo, nos anos 1990, o Estado sofreu profundas transformações, sobretudo na segunda metade da década.3

A abertura do mercado interno às importações, resultado direto do processo de globalização, impôs um novo padrão de competição, expondo os agentes aqui instalados à concorrência internacional. Além disso, a estabilização da economia, alcançada a partir da implantação do Plano Real, representou fato novo na vida das empresas, uma vez que a baixa inflação e a estabilidade de preços requerem postura renovada dos que atuam no mercado. Ademais, houve o acirramento da crise fiscal do se-tor público, até então tratada com certa indiferença quanto à sua existência e dimensão. Por fim, o esgotamento do padrão de intervenção estatal antes em vigor exigiu, não apenas sua reconstrução, como também a redefinição de seu papel na área econômica.4

Essas mudanças não apenas permitiram como exigiram que a tarefa de defesa da concorrência fosse vigorosamente empreendida, o que culminou com a edição da Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994, também conhecida como Lei Antitruste.5

Concomitantemente ao desenvolvimento do antitruste, todo um processo de desregulação da economia foi engendrado.

A supressão de monopólios estatais e o processo de desestatização resultaram num forte ingresso de investimentos estrangeiros no país. Em 1998 atingiu-se o

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pico histórico de movimentações financeiras em fusões e aquisições, estimado em US$ 52.000.000.000,00 (cinqüenta e dois bilhões de dólares).

Embora a análise de condutas nunca tenha sido deixada de lado, era natural que, naquele período, o julgamento de atos de concentração recebesse um tratamento prioritário por parte do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência-SBDC.

Superada essa fase, a política da concorrência voltou seus olhos contra condutas restritivas à competição. Desde o início de 2003, o tripé que compõe o SBDC - o Conselho Administrativo de Defesa Eco-nômica-CADE, autarquia vinculada ao Ministério da Justiça; a Secretaria de Direito Econômico-SDE, órgão também ligado ao Ministério da Justiça; e a Secretaria de Acompanhamento Econômico-SEAE, órgão do Ministério da Fazenda - concentrou seus recursos e esforços no combate, em especial, aos cartéis.

Os agentes econômicos brasileiros, após décadas de interferência do Estado na economia, colaborando indiretamente para a organização de cartéis por meio da fixação de preços e de cotas de produção, ficaram condicionados a não visualizar seus atos e contratos pela ótica concorrencial.

As sociedades cooperativas, caracterizada pela noção essencial de ajuda mútua é, segundo Waldirio Bulgarelli, "a um tempo, empresa econômica e associação de pessoas. Empresa econômica porque a cooperativa, tendo em vista a melhoria econômica de seus associados, assenta-se sobre um complexo organizacional dos fato-res da produção; associação de pessoas pois reúne um certo número de membros em torno do ideal de cooperação, para exploração da empresa".6

Embora objetive o aperfeiçoamento moral do homem por meio da comunhão e da solidariedade, como qualquer outro agente econômico, a cooperativa também encontra sérias dificuldades em enxergar os limites legais do antitruste, tornando-se presença constante em indiciamentos propostos pela SDE e em processos administrativos julgados pelo CADE.

Segundo dados apurados pelo Procu-rador-Geral do CADE, Doutor Arthur Ba-din, as cooperativas - em especial as médicas - são sistematicamente condenadas pela exigência de unimilitância, ou seja, a exclusividade na prestação de serviços médicos, quando implica fechamento de mercado para atuais concorrentes ou potenciais entrantes. Trinta e oito por cento (38%) das condenações aplicadas pelo Plenário em julgamentos ocorridos entre 1994 e 2005 foram devidas a esse motivo. Outra prática comum associada ao serviço médico é a tabela de honorários. Trinta e cinco por cento (35%) das condenações perpetradas pelo Plenário entre 1994 e 2005, foram devidas a esse motivo.7

Muitas das condenações, contudo, poderiam ter sido evitadas caso seus colaboradores tivessem conhecimento das regras antitruste.

A adoção de um programa de prevenção de infrações à ordem econômica como o criado pela Portaria SDE n. 14, de 9 de março de 2004, pode ajudar as sociedades cooperativas a se distanciar de eventuais problemas decorrentes de condutas que causem danos à concorrência.

O objetivo desse trabalho é o de contribuir na difusão da cultura da concorrência entre as sociedades cooperativas, aju-

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dando-as na tarefa de visualizar os limites da cooperação entre competidores.

Nesse intuito, o artigo é dividido em três partes, a saber: 1. Imposição de tabelas de preços por sociedades cooperativas; 2. Adoção de cláusula de exclusividade por sociedades cooperativas; e 3. Programa de prevenção de infrações à ordem econômica.

1. Imposição de tabelas de preços por sociedades cooperativas
1. 1 Aspectos gerais

As práticas restritivas horizontais consistem na tentativa de reduzir ou eliminar a concorrência, seja ao estabelecer acordos entre competidores do mesmo mercado com respeito a preços ou outras condições, seja ao praticar preços predatórios. Em ambos os casos visam, de imediato ou no futuro, individualmente ou em grupo, o aumento do poder de mercado ou a criação de condições para exercê-lo com maior facilidade.8

Algumas práticas podem também gerar benefícios em termos de bem-estar ao mercado, desse modo, é preciso ponderar tais efeitos face aos potenciais impactos anticompetitivos da conduta. Uma prática restritiva somente gerará eficiências líquidas se os efeitos positivos derivados compensarem os negativos.

Segundo o Anexo I da Resolução n. 20, de 9 de junho de 1999, do CADE, uma das situações mais comuns de práticas restritivas horizontais, ainda que outras sejam possíveis, são os ilícitos de associações profissionais, que podem ser qualquer prática que limite, sem justificativa, a concorrência entre profissionais, principalmente mediante a conduta acertada de preços.

Tornou-se comum no Plenário a análise da edição de tabelas por entidades inte-grativas ou representativas que alegam, em suas defesas, não terem fins lucrativos e que, portanto, estariam imunes à Lei Anti-truste.

Observa-se que o legislador abrangeu no art. 15 da Lei Antitruste todas as situações em que possa ser verificada a possibilidade de ocorrência de infrações à ordem jurídica. Segundo o Conselheiro João Bos-co Leopoldino da Fonseca, em voto proferido no Processo Administrativo (PA) n. 65/92 "a Lei n. 8.884/1994 não estabelece qualquer isenção de obrigatoriedade do seu cumprimento a qualquer agente econômico".9

A Lei n. 8.884/1994 deixa claro que não existem exceções nem casos específicos que retirem do CADE a competência para conhecer dos atos lesivos à concorrência, mesmo quando seus efeitos são oriundos de associações ou sociedades sem fins lucrativos, como é o caso das sociedades cooperativas.10

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A tendência do CADE é a de não aceitar o argumento de que as tabelas de preços têm valor meramente referencial. Ainda que não seja a intenção de quem a emite ou não haja a imposição ou a coação de seu uso, as tabelas de preços provocam efeitos nocivos à concorrência, já que atua como instrumento inibidor da livre...

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