A coprodução das ciências e das políticas na gestão da biodiversidade marinha brasileira: a controvérsia sobre o manejo sustentável de espécies ameaçadas

AutorAndreza Martins, Julia Silvia Guivant
CargoPesquisadora Pós-doc. do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGSP/UFSC), Brasil/Professora Titular do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC, Florianópolis, SC, Brasil
Páginas140-171
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2020v19n44p140
140140 – 171
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A coprodução das ciências e das
políticas na gestão da biodiversidade
marinha brasileira: a controvérsia
sobre o manejo sustentável de
espécies ameaçadas1
Andreza Martins2
Julia Silvia Guivant3
Resumo
O uso sustentável de espécies ameaçadas está no centro de controvérsias tecnocientíficas inter-
nacionais que discutem o papel da ciência na orientação de políticas de conservação marinha. No
Brasil, essas controvérsias repercutiram em disputas institucionais sobre a melhor forma de medir,
avaliar e manejar os recursos pesqueiros. As disputas permearam negociações políticas para rever-
são de proibições de pesca de dezenas de espécies incluídas na Lista Nacional de Espécies Amea-
çadas de Extinção. Sob a perspectiva dos Estudos Sociais da Ciência, discutimos a influência dos
conhecimentos peritos nas negociações políticas implicadas no caso. Analisando argumentos
de críticos e apoiadores da medida, compreendemos que, no Brasil, incertezas científicas sobre
o estado de conservação da fauna aquática resultam em práticas de gestão pública divergentes
atuando sobre os mesmos espaços e recursos. Tais práticas associam visões concorrentes sobre
como a administração pública deve lidar com a incerteza científica e coproduzem políticas de
gestão da biodiversidade marinha.
Palavras-chave: Estudos Sociais das Ciências. Ciência regulatória. Governança marinha. Coprodução.
1 O presente artigo é baseado em pesquisa desenvolvida pela primeira autora, orientada pela segunda, no con-
texto da tese menor e foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe-
rior (Capes) – Brasil. Código de financiamento 001.
2 Pesquisadora Pós-doc. do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa
Catarina (PPGSP/UFSC), Brasil. Integrante do Instituto de Pesquisa em Risco e Sustentabilidade da UFSC (IRIS/
UFSC). E-mail: andrezamartins@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6227-1920.
3 Professora Titular do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC, Florianópolis, SC, Brasil.
E-mail:julia.guivant@ufsc.br. ORCID:https://orcid.org/0000-0001-6201-887X.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 19 - Nº 44 - Jan./Abr. de 2020
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Introdução
Nas últimas décadas, diagnósticos e modelagens produzidos pela Or-
ganização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e
União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN) estão entre as
referências mais utilizadas para avaliar o estado de conservação da biodi-
versidade marinha e direcionar políticas públicas de gestão do uso susten-
tável dos recursos pesqueiros. Entretanto, o uso político desses relatórios
é questionado por especialistas das ciências pesqueiras e da conservação,
que criticam a fragilidade e supercialidade das avaliações produzidas e sua
ecácia na conservação marinha (COLLEN et al., 2016; CRESSEY, 2015;
KAISER, 2013).
FAO e IUCN são agências internacionais que frequentemente atuam
sobre os mesmos espaços e recursos ambientais, com objetivos, por vezes,
divergentes. Enquanto a FAO trabalha para a promoção da pesca susten-
tável, a IUCN centra-se no estímulo à conservação marinha. Problemas
emergem quando há sobreposição de áreas de atuação ou de objeto de
gestão, a exemplo dos recursos pesqueiros. Neste caso, o debate especiali-
zado entra em ação e se subdivide em duas controvérsias tecnocientícas
internacionais que contestam a centralidade do emprego das diretrizes téc-
nicas da FAO e IUCN no direcionamento de políticas de gestão pesqueira
e conservação marinha.
A primeira se dá majoritariamente entre peritos que integram os comi-
tês de especialistas em conservação da IUCN e divergem sobre a aprovação
do uso sustentável de espécies ameaçadas de extinção para ns comerciais.
O principal vetor de discórdia aparece quando os dados sobre uma espécie
são inconclusivos e reside na acusação mútua entre os pares de que o posi-
cionamento de seus opositores não está baseado nos dados, mas em ideo-
logias (CAMPBELL; GODFREY, 2010; MROSOVSKY, 1997, 2000;
RICHARDSON, 2000). Isto é, na presença de incerteza tecnocientíca,
especialistas que discordam do uso sustentável de espécies ameaçadas acu-
sam seus opositores de serem inuenciados por grupos sociais beneciários
de tal liberação, enquanto cientistas propensos a discutir a prática acusam
o outro grupo de se deixar inuenciar por ONGs ambientalistas e não
considerar as necessidades de todas as coletividades humanas.
A coprodução das ciências e das políticas na gestão da biodiversidade marinha brasileira: a controvérsia sobre o manejo
sustentável de espécies ameaçadas | Andreza Martins, Julia Silvia Guivant
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Na segunda controvérsia, sobretudo cientistas pesqueiros discordam
sobre a credibilidade dos dados empregados pela FAO para construir diag-
nósticos de saúde dos estoques. Em um grupo, alinham-se aqueles que de-
fendem que os dados empregados pela agência são irreais ou insucientes
para a elaboração de diagnósticos. Como argumento, exploram a ausência
de dados de monitoramento para a maior parte das unidades populacio-
nais pesqueiras que não detêm signicativo interesse econômico, inclusive
nos países que melhor monitoram seus estoques. Para esses pesquisadores,
o resultado dos diagnósticos da FAO, considerados por eles generalistas e
superciais, é o fortalecimento de um padrão de opinião que supõe que a
única solução para a conservação marinha é a proibição das pescarias mun-
diais (BELHABIB et al., 2014, 2015; CHABOUD et al., 2015; WORM
et al., 2009). Em outro grupo, posicionam-se aqueles que assumem que
os dados empregados pela agência reetem de maneira geral o grau de
abundância dos estoques, os quais devem, portanto, ser utilizados para
subsidiar diagnósticos pesqueiros (BELHABIB et al., 2014; HALPERN et
al., 2012; ROSENBERG et al., 2014). Para muitos desses pesquisadores, a
maioria dos dados da FAO está inclusive subdimensionada e a situação dos
estoques mundiais é ainda mais crítica do que a diagnosticada (CRESSEY,
2015; PAULY; ZELLER, 2016).
No Brasil, essas controvérsias repercutem de forma direta em disputas
entre especialistas que mantêm posicionamentos divergentes sobre a me-
lhor forma de medir, avaliar e manejar o peixe e a pesca e inuenciam a
formulação de políticas nacionais de conservação da biodiversidade mari-
nha. Enquanto a maior parte dos cientistas pesqueiros defende o emprego
de ferramentas técnicas das ciências pesqueiras, incluindo aquelas mobili-
zadas pela FAO, para nortear a gestão pública da fauna marinha ameaçada
(QUEIROZ et al., 2019; PIO; PEZZUTO; WAHRLICH, 2016; PATRI-
CIO et al., 2016), cientistas da conservação argumentam que as ferramen-
tas da biologia e ecologia, a exemplo daquelas mobilizadas pela IUCN, são
mais adequadas para a tarefa, particularmente quando existe algum grau
de ameaça de extinção (MARRUL FILHO, 2003; DIAS NETO, 2015;
RODRIGUES, 2006). Como nos debates internacionais, diferentes posi-
cionamentos tecnocientícos resultam em práticas políticas divergentes de
gestão da fauna marinha.

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