Os costumes mercantis e o seu assentamento pela JUCESP

AutorMárcio Ferro Catapani
Páginas27-58

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Ver Nota1

1. As fontes do Direito Comercial - Papel próprio dos usos e costumes mercantis

O Direito Comercial se distingue dos demais ramos do Direito em virtude da existência de princípios jurídicos peculiares. Tais princípios advêm tanto do desenvolvimento histórico desse ramo jurídico quanto da própria lógica negocial e da deontologia subjacentes às relações travadas entre comerciantes,2 que demandam um regramento jurídico dotado de normas e dinâmica particulares.3

Nesse contexto, e por essa razão, as fontes do Direito Comercial possuem uma

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forma também peculiar de se estruturarem. É corrente a afirmação de que, nesse ramo, os usos e costumes4 exercem um papel de maior relevo que em outros, mesmo nos sistemas jurídicos de Direito Continental.5 A própria dinâmica da formação do Direito Comercial, como direito especial,6 decorreu da adoção generalizada de costumes próprios e diversos daqueles aplicáveis às relações jurídicas em geral.7

O iter percorrido para a consolidação de um costume comercial inicia-se com a utilização de uma cláusula em contratos celebrados entre as partes. Verificada pelo mercado a utilidade daquela cláusula, passa ela a constar da grande maioria dos contratos celebrados na praça em que surgiu.8 Aos poucos, em virtude do intercâmbio não só de bens, mas também de conhecimentos e técnicas entre os comerciantes, a norma se espraia para outros ramos da ati-vidade econômica e para outras praças.9

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Em um determinado momento não detectável no tempo, a classe dos comerciantes passa a considerar aquela norma como necessária e implícita nos contratos. Por fim, acaba por ser reconhecida pela jurisprudência e, em boa parte dos casos, pela própria lei.1011 Assim, de acordo com a precisa observação de Escarra, "os usos, quanto à sua formação, nascem como uma prática individual expressa, e terminam como uma regra coletiva tácita".12

Portanto, existe uma seleção natural dos costumes, os quais somente se impõem quando consistem em regras que efetiva-mente contribuem para o bom fluxo das relações mercantis.13 Nesse sentido, Vi-vante afirma que os costumes "são normas de direito constituídas mediante a observância dos mercados, de onde advém sua legitimidade".14 Em termos mais modernos, pode-se dizer que os costumes assumem uma função de reduzir custos de transação no mercado.1516 E se, porventura, uma determinada norma consuetudinária não cumprir adequadamente essa função, é excluída do sistema,17 deixando de ser utilizada pelos agentes econômicos, que a abandonam.18 A norma, na linguagem de

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Vivante, perde sua legitimidade, tendendo a desaparecer e não mais ser vista como subentendida e vinculante nas relações comerciais.

No mesmo sentido é a lição de Hayek, para quem as normas atuam na geração e transmissão de conhecimento, sendo sele-cionadas de acordo com a sua eficiência na efetivação dessa função.19 Assim, para esse autor, o capitalismo surge como uma ordem espontânea dada pelo aperfeiçoamento advindo das transações interindividuais realizadas no mercado. E a seleção das instituições e normas não deve se dar por critérios de moralidade predeterminados, mas pelo mecanismo natural do mercado,20 que escolhe as mais eficientes.21

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Destarte, os costumes constituem uma fonte viva e sempre adaptável de normas jurídicas.22 De fato, os costumes não são absorvidos pelo sistema jurídico como um produto acabado e estático, mas estão em contínua modificação e tendem a se adaptar constantemente às exigências sociais ou econômicas, sendo, por isso, relativamente fluidos.23

Essa é, efetivamente, a grande utilidade dos costumes: permitir que o sistema jurídico atenda aos novos reclamos que lhe são apresentados, em permanente evolução.24 Se as normas legisladas somente podem se adaptar a esses novos reclamos aos saltos, ou seja, por meio de fatos normativos pontualmente marcados no tempo, os costumes são criados de maneira constante e fluida, sendo a substituição25 dos costumes antigos por novos feita de modo quase imperceptível, no âmbito mercantil, pela prática diuturna dos comerciantes.

Por outro lado, essa capacidade de constante adaptação dos costumes acarreta sua principal debilidade: uma norma con-suetudinária gera menos segurança e pre-visibilidade nas relações econômicas que outra de origem legislativa.26 Alei é dotada

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de um maior grau de estabilidade e, por consistir em um texto escrito, a par das possibilidades interpretativas que ocasiona, traz em si um leque menor de resultados normativos possíveis. O costume, tanto pela sua constante elaboração, quanto pelo caráter eminentemente disperso de sua criação,27 gera uma miríade de resultados normativos possíveis e passíveis de aplicação, trazendo em si uma certa insegurança, que, ademais, é ínsita a seu elemento adaptativo e corretivo.28

Outrossim, no que diz respeito à relação entre costume e lei, a doutrina tradicionalmente classifica os primeiros em secun-dum legem (conformes às disposições legais), praeter legem (que regulam matéria sobre a qual não existe disposição legal) e contra legem (contrários às disposições legais). Tradicionalmente, nega-se a possibilidade de existência ou de reconhecimento pela ordem jurídica estatal de costumes contra legem,29 com vistas a garantir a segurança jurídica e a soberania do Estado na elaboração do ordenamento jurídico. Contudo, como bem ressalta Tércio Sampaio Ferraz Júnior,30 a análise cuidadosa da doutrina e da jurisprudência demonstra que certas vezes os costumes são reconhecidos mesmo que contrariem disposição expressa de lei. É o caso, por exemplo, no Brasil, da admissão dos cheques ditos "pré-datados".31

O recurso direto e expresso aos costumes pelas decisões judiciais ou administra-

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tivas é bastante pequeno. Tal se dá, em primeiro lugar, porque com a incorporação dos costumes às práticas sociais e sua institucionalização surge a pressuposição de possíveis sanções aplicadas pela autoridade, mas, principalmente, de sanções difusas aplicadas pelos demais agentes econômicos em caso de descumprimento ou inobservância.3233 Os próprios agentes que criam o costume naturalmente fazem com que a regra derivada do mesmo seja cumprida. Assim, a eficácia natural dos costumes é tendencialmente maior que a da lei, ou, em outros termos, o recurso à autoridade para a sua aplicação tende a ser menos necessário.34 Em segundo lugar, grande parte das vezes em que uma norma consue-tudinária é aplicada em uma decisão judicial ou administrativa, não existe menção expressa à sua origem, por ser de mais difícil comprovação e, sob o ângulo da autoridade, legitimação. Destarte, a aplicação da norma consuetudinária costuma vir associada à utilização de cláusulas gerais ou conceitos abertos ou indeterminados, como boa-fé,35 legítima expectativa ou função social.3637

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Em virtude de sua formação difusa ou descentralizada, assume grande importância a questão a respeito da prova dos usos e costumes, à qual passamos a nos dedicar. Nesse sentido, deve-se frisar que, mesmo que o costume não venha a ser aplicado de forma expressa pelos tribunais e autoridades administrativas, a sua prova é essencial para a formação da convicção do julgador e para a correta aplicação das cláusulas gerais e conceitos abertos acima mencionados.

2. A prova dos usos e costumes mercantis

O costume, tanto quanto a lei, como normas jurídicas que são, preexistem à sua aplicação pelos órgãos competentes. Nesse sentido, a lição de Kelsen:

"A questão de saber se existe o fato de um costume criador de Direito somente pode ser decidida pelo órgão aplicador do Direito. (...) A posição em que os órgãos aplicadores do Direito, especialmente os tribunais, se encontram perante as normas do Direito consuetudinário, em nada difere daquela em que se encontram perante as normas legisladas. Com efeito, precisamente como o órgão que tem de aplicar uma norma criada por via consuetudinária precisa determinar o fato do costume, quer dizer, precisa decidir a questão de saber se uma norma a aplicar foi de fato criada por via consuetudinária, também o órgão que tem de aplicar uma norma criada por via legislativa tem de verificar o fato legislativo, isto é, tem de decidir a questão de saber se uma norma que vai aplicar foi criada por via legislativa. Esta questão pode ser mais fácil de decidir e, por isso, vir menos claramente à consciência destes órgãos do que a questão de saber se uma norma surgiu por via consuetudinária, especialmente quando as leis são publicadas numa folha oficial."38

Justamente por essa maior necessidade de trabalho consciente do órgão aplicador na descoberta do "fato do costume", o sistema jurídico, em especial o Direito Processual, estabelecem normas acerca da prova do direito consuetudinário.39

Inicialmente, Vivante faz advertência de que "os usos não devem ser provados como os fatos, porque não são fatos".40 Justamente por isso, segundo esse mesmo autor, o juiz que conhecer o uso deve aplicá-lo, mesmo que não tenha sido alegado pelas partes, porque ele é uma fonte de direito.41 Em acréscimo, Vivante ainda asse-

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vera que o costume pode ser alegado em qualquer estágio da demanda, porque se trata de matéria de direito - mesmo que a tentativa de produzir a prova já tenha anteriormente...

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