Covid-19, o direito econômico e o complexo industrial da saúde

AutorGiberto Bercovici
Páginas239-262
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COVID-19, O DIREITO ECONÔMICO
E O COMPLEXO INDUSTRIAL
DA SAÚDE
GILBERTO BERCOVICI
A atual pandemia da COVID-19 e as crises sanitária e econômica
dela decorrentes trouxeram à baila novamente as discussões sobre o
direito em tempos de crise. No caso específico do direito econômico,
a crise faz parte da sua própria essência, tendo em vista que é um campo
que surge eP se consolida em virtude das grandes crises e transformações
econômicas e sociais da primeira metade do século XX. Crises e
transformações vinculadas às forças da industrialização e da urbanização
que se ampliaram a partir da segunda metade do século XIX e aos
conflitos sociais, políticos e econômicos gerados neste processo. Já ao
final do século XIX, além das polêmicas em torno das relações entre o
direito e a economia, pode-se afirmar que começou a se estruturar, com
as transformações advindas da revolução industrial, uma espécie de “direito
econômico avant la lettre”, na expressão de Michael Stolleis, muito marcado
pela crise e mudanças do direito privado tradicional e focado em torno
da empresa.1
1 STOLLEIS, Michael. Geschichte des öffentlichen Rechts in Deutschland. München, C.H:
Beck, 1999, vol. 3, pp. 226-228.
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GILBERTO BERCOVICI
A formação da sociedade industrial acarreta o enfraquecimento
do liberalismo, embora o discurso liberal permanecesse hegemônico. A
ampliação da população urbana gerou uma maior demanda por serviços
públicos e por infraestruturas essenciais, como transporte urbano, energia,
saneamento, habitação, além da necessidade de investimentos maciços
em ferrovias, portos, usinas geradoras de energia, estradas, etc. O processo
de industrialização gerou também grandes conglomerados, especialmente
em países como a Alemanha e os Estados Unidos.2 Há a expansão dos
bancos, das sociedades anônimas, das seguradoras, dos contratos de massa,
entre outras modificações nos tradicionais institutos do direito privado.
A codificação do direito privado havia deixado de fora uma série de
campos vinculados às relações econômicas. As precárias condições de
trabalho, especialmente nas fábricas, no decorrer de todo o século XIX,
seriam contestadas pelos movimentos dos trabalhadores e de suas lutas
surgiriam as primeiras leis trabalhistas e de seguridade social, além do
início da ampliação do direito de voto, que culminaria na adoção do
sufrágio universal, masculino e feminino, após a Primeira Guerra
Mundial, em países como a Inglaterra e a Alemanha.3
Com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os Estados
envolvidos são obrigados a se reestruturar. Como primeira “guerra
total” da história, a Primeira Guerra Mundial exige uma mobilização
nunca antes vista de todas as forças econômicas e sociais dos países
2 Em seu clássico livro O Capital Financeiro (Das Finanzkapital), de 1910, Rudolf
Hilferding já havia constatado que o fenômeno da substituição da livre concorrência
pela concentração de capital havia modificado as relações da classe capitalista com o
poder do Estado. Cf. HILFERDING, Rudolf Das Finanzkapital, 2ª ed, vol. 2. Frankfurt-
am- Main: Europäische Verlagsanstalt, 1973, pp. 406-407, 453-457 e 460-462.
3 A bibliografia sobre estas transformações é inesgotável. Sobre o papel do Estado na
criação e manutenção da infraestrutura, vide JELLINGHAUS, Lorenz. Zwischen
Daseinsvorsorge und Infrastruktur: Zum Funktionswandel von Verwaltungswissenschaften
und Verwaltungsrecht in der zweiten Hälfte des 19. Jahrhunderts, Frankfurt-am-Main,
Vittorio Klostermann, 2006; GULDI, Jo. Roads to Power: Britain Invents the
Infrastructure State, Cambridge (Ms.)/London, Harvard University Press, 2012. Sobre
o início da seguridade social, vide EWALD, François. L’État Providence. Paris: Grasset
& Fasquelle, 1986 e STOLLEIS, Michael. Geschichte des Sozialrechts in Deutschland: Ein
Grundriss. Stuttgart: Lucius & Lucius, 2003, pp. 52-74.

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