Criança e Adolescente: Reflexões Político-Legislativas sobre a Capacidade Civil e a Maioridade penal no Brasil

AutorAna Cláudia Silva Scalquette; Carlos Eduardo Nicoletti Camillo; Rodrigo Arnoni Scalquette
Páginas342-348

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Cada um de nós é, indubitavelmente, culpado por todos e por tudo na Terra, não só pelo pecado de todos no mundo, como cada um é, pessoalmente, culpado por todos e cada um dos homens nesta Terra.

Fiodor Dostoiévski

1. Introdução

Os temas da capacidade civil e maioridade penal no Brasil são alvo de discussões não só no campo jurídico, mas também político e social.

Sabe-se que quando se aborda questões que envolvem crianças e adolescentes passa-se, forçosamente, por princípios que exigem dos técnicos/ intérpretes um cuidado mais do que especial, pois visam, sobretudo, à proteção de vulneráveis, seres humanos com desenvolvimento ainda incompleto.

Hodiernamente, temos visto correlações entre a capacidade para a prática de atos da vida civil com a possibilidade de responsabilização criminal de menores de 18 anos.

Embora estejamos em campos distintos da ciência jurídica, parece-nos que a discussão que ora se encerra exige uma análise mais profunda em que respostas jurídicas sobre a possibilidade ou não da redução da maioridade penal para 16 anos figurariam apenas como consequência de uma decisão tomada com base em uma reflexão profunda dos caminhos

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que queremos percorrer no tratamento a ser dado ao menor.

Ainda que em breves páginas, a informação para a consciente reflexão é nossa proposta neste artigo.

2. Capacidade civil

A capacidade civil constitui um dos tópicos basilares na teoria geral do direito civil, mas nem por isso deixa de oferecer ao intérprete do sistema normativo dificuldades para a sua perfeita eficácia e seu sentido jurídico. Em nosso sistema jurídico, o art. 1º do CC bem dimensiona a sua capital importância à eficácia das relações jurídicas, ao prescrever que “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.

Essa capacidade de direitos e obrigações deve ser compreendida como a idoneidade ou aptidão, afeta às pessoas naturais ou jurídicas, de adquirirem direitos e contraírem obrigações. Nessa ordem de ideias, a capacidade é elemento, medida e extensão da personalidade, mas não se confunde com ela. Enquanto a capacidade exprime poderes ou faculdades quanto à aquisição e ao exercício dos direitos, a personalidade revela-se como a própria idoneidade e aptidão de poder exercer tais poderes ou faculdades1.

Nesse sentido, a capacidade pode ser classificada quanto a sua natureza e quanto sua extensão. Quanto à natureza, a capacidade pode ser de direito e de fato. Capacidade de direito, ou de gozo, é aquela inerente às pessoas, na forma do art. 1º, referente à aptidão de adquirirem direitos e contraírem obrigações na ordem civil. A capacidade de fato ou de exercício está ligada à faculdade de a pessoa, por si própria, adquirir e contrair obrigações na ordem civil. O menor impúbere, por exemplo, é capaz de suceder por causa mortis (capacidade de direito), mas não é capaz de exercer o direito à sucessão (capacidade de fato) por si próprio2.

Quanto à extensão, é possível vislumbrar a capacidade plena, a incapacidade relativa e a inca-pacidade absoluta, segundo a aderência a critérios de maturidade e sanidade, consagrados socialmente e, assim, positivados em nosso sistema.

A capacidade plena pressupõe, além de atingida a maioridade, a sanidade e a maturidade necessárias para viabilizar o discernimento elementar a todos os atos da vida civil.

Na medida em que a sanidade e a maturidade não se mostram, segundo critérios socialmente aceitos e positivados, regularmente incidentes em uma determinada pessoa, o sistema jurídico cria uma teia de proteção, segundo as especificidades concretas da pessoa, ora mostrando-se de maneira relativa, hipótese em que a própria pessoa poderia praticar atos da vida civil, carecendo, todavia, de outrem a lhe auxiliar (art. 4º, CC), ora de maneira absoluta, condicionando-se a intervenção necessária de um terceiro assim qualificado, a representar adequadamente a pessoa para esses mesmos atos da vida civil.

À evidência, trata-se de sistema que tem por escopo a proteção das pessoas e de seus bens, na exata medida de suas aptidões. Esse sistema não difere dos demais sistemas jurídicos contemporâneos, a não ser no que tange à questão da adequada época para se atingir a maioridade e, pois, a plena capaci-dade para os atos da vida civil3. E a razão disso não é difícil de ser entendida: é preciso ter em mente que a positivação da capacidade não atende anseios de ordem legislativa, mas aperfeiçoa e chancela valores sociais muito peculiares — estes, sim, divergentes nos distintos ordenamentos jurídicos.

A peculiaridade do nosso sistema, presentemente, faz nascer a obrigatoriedade, ao seu exegeta, de interpretar o instituto da capacidade conforme a Constituição Federal e, mais precisamente, à luz do seu art. 1º, inciso III e, fundamentalmente, do art. 227, caput e § 3º, sem perder de vista o Decreto n.
99.710, de 21.11.19904, que promulgou a Convenção sobre os Direitos da Criança e, ainda, o ECA

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(Lei n. 8.069/90).

Importante frisar, sobretudo, que três são os vetores principiológicos fundamentais a guiar o intérprete do sistema normativo em se tratando da interpretação da capacidade: dignidade da pessoa humana, a integral proteção da criança e o melhor interesse da criança.

A bem da verdade, todas as pessoas devem ter a sua dignidade protegida em nosso sistema, sem distinção. Mas, em se tratando dos menores, essa dignidade é qualificada pelo melhor interesse e pela integral proteção.

Quer isso significar, portanto, que as questões concernentes à capacidade não podem ceder a uma vontade puramente legislativa ou a uma pressão popular que podem se distanciar tanto do melhor interesse como da integral proteção.

A dignidade da pessoa humana é, por assim dizer, mais que um princípio fundamental: o signo da solidariedade que faz irradiar, de maneira inarredável, que competirá à família, à sociedade e ao Estado, assegurar a dignidade mínima à criança e ao adolescente, aqui compreendida de maneira prioritária e abrangendo-se, dentre outros, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar.

Já se afirmou que a violação de um princípio é muito mais que uma violação da norma, porquanto se afigura em nítida agressão ao ordenamento jurídico como um todo5.

Desta feita, todas as vezes que são trazidas à discussão questões que envolvem a capacidade, maioridade e imputabilidade, não se pode perder de vista o foco em seu maior protagonista: o menor.

O Estado, a sociedade e a própria família, nesse contexto, têm uma nítida responsabilidade para com as crianças e os adolescentes.

Alterar a legislação, majorando ou minorando a capacidade, seja civil ou criminal, talvez possa significar para alguns um avanço, mas não terá o condão de afastar a nossa integral responsabilidade pelas escolhas que tornamos impositivas nessas alterações legislativas.

Para além da discussão sobre a capacidade civil em si, o que comumente se encontram são os argumentos comparativos relacionando a capacidade civil com a maioridade penal.

Questiona-se: Como podem pessoas com 16 anos votar e contrair núpcias e não responder por crimes que cometem?

Essa incongruência sistêmica não deve ser interpretada, a nosso ver, levando-se apenas em conta o critério cronológico, mas os efeitos que uma redução da maioridade penal pode trazer à sociedade não só do ponto de vista da violência, mas, especialmente, da perspectiva do menor.

3. Maioridade penal

A maioridade penal, ou melhor, a redução da maioridade penal no Brasil, suscita inúmeras discussões, quer por parte dos operadores do direito, quer pela sociedade civil. Nesse sentido, há uma bipolaridade nos debates: de um lado, aqueles que defendem a redução da maioridade penal dos 18 anos de idade...

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