Crianças, infâncias, gênero e sexualidades ou de quando a escola e as crianças disputam seus corpos

AutorFlavia Bonsucesso Teixeira e Elenita Pinheiro de Queiroz Silva
Páginas137-153

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A proposta de escrever esse texto surgiu do convite para discutir sobre educação e gênero no Curso de Especialização em Direitos Humanos. No primeiro momento, pensei em recusar o convite alegando que estaria distante das questões atuais e que não conseguiria produzir uma reflexão atualizada. Como retomaria uma discussão realizada na produção da dissertação de mestrado com um lapso de tempo de 15 anos? O que os brinquedos e brincadeiras, crianças, professoras e família de uma escola de educação infantil teriam a dizer hoje? A pesquisa realizada, naquele momento, tinha como preocupação investigar a construção do gênero no espaço escolar, identificando práticas que engendrariam a naturalização das desigualdades sociais entre meninos e meninas no cotidiano de uma escola que estabelecia a proposta de educação não sexista no currículo. No

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segundo momento, a ideia da escrita toma corpo quando convido minha parceira de discussão e luta da UFU, Elenita Pinheiro, que tem se dedicado a esse diálogo no campo escolar. Pensamos que este seria um bom lugar para conversarmos e atualizarmos os nossos achados no diálogo com a escola de educação infantil.

Não poderíamos afirmar que a escola pesquisada por Flavia Teixeira mantém a proposta em seu currículo. Brincadeiras e brinquedos atravessaram as leituras e interesse sobre as transexualidades sendo analisados como importantes órtese do gênero (BENTO, 2006; 2015, TEIXEIRA, 2013) e testemunha/prova no processo de construção do "verdadeiro transexual" (BORBA, 2016).

Falar de gênero na escola também remeteria a um lugar muito distinto do cenário da pesquisa original em 2001. Naquele momento, pesquisadoras apontavam a relevância de estudar temáticas e recortes possíveis para pensar a relação gênero e educação (LOURO, 2000), e, agora, estamos envolvidos por um clamor sem pretendentes pela retirada da palavra gênero nos planos de educação1. Assistimos e resistimos a uma ofensiva do Poder Legislativo que deslocou a discussão, se antes parecia de pouca importância no cotidiano da escola, passou a ocupar um lugar perigoso, de proibição2.

Também a primeira autora havia mudado desde então, não somente em relação ao percurso acadêmico, mas também porque se (des)encontrava novamente em meio a brinquedos, brincadeiras e um filho de 04 anos ingressando nos espaços da escola por meio da educação infantil. Pensando nessa nova experiência de retornar à escola de educação infantil, como mãe, quinze anos depois, selecionou alguns fragmentos da pesquisa para discutir em sala de aula e nos propomos a refletir sobre o quanto esses relatos ainda fazem sentido para as professoras hoje. Foram as expressões,

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os reconhecimentos e, principalmente, os comentários ao final daquela fala que encorajaram a publicação deste, somado ao diálogo e convivência com a coautora desse texto que tem realizado experiências partilhadas com professoras, crianças e escolas da educação infantil colocando as brincadeiras, os brinquedos e a dimensão do gênero e da sexualidade em lugares não tão distintos do que experimentado no início da década (2000).

Cena 1: O Pátio

No pátio, um grupo de meninos, formado por doze integrantes, subia no escorregador pelo lado oposto, cobrindo-o de areia e provocando muitos incidentes. Desafiavam o perigo. Todas as crianças brigavam por espaço na areia, para serem os primeiros, para ocupar o lugar dos outros. Daí, várias desavenças marcadas por empurrões, chutes, um e outro tapa, que apenas eram levados ao conhecimento da professora quando os envolvidos se machucavam. Observei uma situação em que o atrito terminou com um dos meninos jogando areia nos olhos de outro. A intervenção da professora foi suficiente para reorganizar o direito de cada um ao espaço, os episódios escolares eram nomeados apenas como "coisa de meninos".

Quase todas as meninas pareciam acompanhar as brincadeiras nos escorregadores, nos cavalinhos de madeiras à distância, sem contar que não brincavam no labirinto, espaço predominantemente ocupado pelos meninos, com estratégias agitadas e diferenciadas para a subida e descida no brinquedo. No mesmo cenário, algumas meninas pareciam ter dificuldades de planejamento de estratégias para subir em uma pedra. A exploração do ambiente parecia ser distribuída segundo o gênero e os brinquedos e brincadeiras contribuiriam para delimitar quais as habilidades podem (e devem) ser construídas.

Duas meninas que se encontravam desde o início no tanque de areia, brincavam no mesmo espaço dos meninos, sendo uma pertencente à turma do primeiro período (entre 3 e 4 anos de idade) e a outra à turma do segundo período (entre 4 e 5 anos), pareciam não querer se envolver na brincadeira do escorregador nem nos incidentes, mantendo-se à distância. Sugeriam reconhecer que aquele espaço era segregado. Em dado momento, a menina da turma do segundo período retirou-se do tanque de areia e abriu uma mochila rosa, que trouxera para o pátio.

Batom, sombra e outros cosméticos foram retirados da mochila surgindo, então, a figura e o ritual propriamente feminino, a maquiadora e a produção da beleza corporal. Uma fila logo se formou, as meninas, ordenadamente, aguardaram o momento em que seriam transformadas

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em fadinhas. Este foi um dos raros momentos em que observei as meninas em grupos maiores do que as duplas e trios. A maquiadora incansável foi atendendo, segura de suas habilidades ? cujo treinamento parecia ter iniciado precocemente ? até ser interpelada por questões que pareciam fora da ordem.

Uma menina negra, minoria considerável no universo da escola, reivindicou ser maquiada de fadinha como as outras. Então, a relutante maquiadora indagou: Quer ser a bruxa? A personagem inexistente surgiu para dar materialidade à diferença, para visibilizar outros marcadores que atravessam a escola e posicionam os sujeitos. A professora estava perto, assim como eu, teria ouvido a enunciação, mas não interferiu. A menina negra tornada bruxa sem resistência e sem controvérsia.

As meninas observadas, mesmo de uniformes, não dispensavam o batom, as fitas, os adornos, os tamancos e as sandalinhas que traziam as marcas das sensuais apresentadoras de programas de auditório. Ficar bonita, num mundo eminentemente cor-de-rosa desenhado para as fadas, princesas e apresentadoras brancas, que constituem para as meninas o modelo a ser atingido, que exclui as negras e nos faz retornar ao episódio da bruxa. A bruxa é o contraponto do modelo hegemônico de beleza, assim como a menina negra identificada na pesquisa.

Em seguida, um menino se apresentou para a brincadeira da maquiagem e foi interpelado com uma pergunta em tom repreensivo: Você quer ser fadinha? Diante do enfático sim, que não envergou diante do estranhamento e censura, restou à dedicada maquiadora a alternativa de delegar a um grupo de meninos, que brincavam próximos, a tarefa da repressão. Bastou a censura do grupo e o menino cabisbaixo recuou, saiu e escolheu outra brincadeira. Novamente, o episódio passou despercebido aos olhos da professora: menina negra-bruxa, menino que quer brincar de fada e não pode, professora sem razões para intervir, ambos envolvidos na teia das hegemonias e privilégios.

As cenas decorridas em observações de pesquisa no ano de 2000 são de uma atualidade assustadora quando conversamos sobre os acompanhamentos e relatos escutados pela coautora desse texto em turmas de educação infantil em 2015-2016. Os lugares das meninas negras e dos meninos nos campos e fronteiras marcados por raça/etnia, gênero e sexualidade de forma desigual.

O envolvimento e a manutenção das meninas negras ocupando as personagens da bruxa são intersecionados com os lugares de gênero/raça/ etnia. Caso os meninos reivindiquem brincar de fada lá atrás ou de Barbie no presente momento eles são rechaçados e convidados a se manterem e

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locomoverem nas teias heteronormativas. Teias estas que afirmam o lugar de gênero alinhado ao sexo biológico e a uma expressão de sexualidade normatizada - a heterossexual. A fantasia, a brincadeira e o brinquedo são lugares fundamentais para a reiteração e consolidação da teia. Entram nesse jogo não apenas meninas e meninos, mas também professoras e professores.

Outra narrativa, de 2000, uma das professoras chamou a minha atenção para um "menino diferente". Entre quatro meninas, o menino corria no pátio sem perceber que era observado. Mas, assim que percebeu a filmadora, parou à sua frente e iniciou uma série de movimentos, enquanto o restante do grupo foi alertado para a existência da câmera. O menino, nas pontas dos pés, simulou passos de ballet clássico. Delicado nos movimentos e expressões faciais, não hesitou em demonstrar força na disputa com uma menina pelo melhor espaço na frente da máquina. Foi identificado como o protagonista de uma história relatada pela professora sobre um menino que se vestia com saias na brinquedoteca, para brincar de casinha. O relato trazia um tom de estranhamento e algo de acusatório. Seria a questão da sexualidade problemática também para os agentes escolares? O detalhe da sua vestimenta chamou bastante a atenção, a sunga de banho na cor rosa. Seria a homossexualidade, o argumento para a vigilância sobre os meninos considerados diferentes?

Em 2014, a coautora deste capítulo encontra-se diante da história de Kadu, narrada por sua professora em um curso de extensão, quando conta daquele menino de 05 anos. Aflita com o fato de Kadu gostar de brincar com a boneca Barbie, a professora relata que suas coleguinhas não o permitiam...

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