Crime Continuado

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas575-590

Page 575

23.1. Considerações preliminares e críticas

O crime continuado (fortgesetzte delikte), por meio de criação exclusiva da lei (art. 71, CP), constitui uma unidade jurídica. O dispositivo legal que o contempla consolida, como entidade única, provida de singularidade, diversos crimes. E o faz por equidade e mera ficção.

Integram o crime continuado diversos fatos criminosos, perpetrados com pluralidade de ações, que, considerados isoladamente, configurariam, por si próprios, delitos distintos em concurso material. Mas a lei preferiu contemporizar, no caso, com o rigor sancionador do concurso real e erigiu, por política criminal, a fictio juris do delito continuado para reunir em um só bloco criminoso todos os fatos delituosos integrantes.

Para esse mister, contudo, é preciso haver conexidade entre os crimes, o que se dessume pela presença dos requisitos de os delitos serem da mesma espécie e cometidos em condições semelhantes de tempo, lugar e maneira de execução, a que impende acrescentar a unidade de desígnio.

Assim, pela espécie dos crimes cometidos e pela conexão de modus operandi, temporal e espacial entre eles, o legislador criou um vínculo de dependência a entrelaçar os fatos delituosos. Estes, por ficção legal, se aglutinam e solidificam em episódio criminoso único e passam a constituir meras frações ou parcelas do todo. O elo de dependência criado sugere o desdobramento delitivo do mesmo fato criminoso, instando que os delitos subsequentes sejam considerados continuação do primeiro.

Há, portanto, presente a conexidade requestada pela lei, a integração, como disse o Juiz Roberto Grassi, de várias microações numa só macroação1365.

Estabelece-se, então, uma unidade de crime, com pena única majorada, em detrimento do concurso real de delitos e do cúmulo material sancionador.

Lydio Machado Bandeira de Mello assim se expressou:

Page 576

"Adota-se a ficção do crime continuado para evitar, por exemplo, que o autor de 30 pequenos furtos, merecendo cada um 1 ano de reclusão, seja condenado a 30 anos de reclusão, exatamente como o mais feroz e desumano dos homicidas"1366.

Trata-se - discorre Hermenegildo de Souza Rêgo - de matéria de transcendental importância, especialmente em função do problema das unificações de penas. Criminosos da mais alta periculosidade, condenados a dezenas e dezenas de anos de reclusão, invocam o instituto na tentativa de verem unificadas as suas penas no correspondente à de um único delito com acréscimo de, no máximo, 2/3. Criam-se, nesse afã, situações absurdas, como a do réu absolvido reclamando contra a absolvição: quer ser condenado porque a condenação lhe é necessária para não interromper uma cadeia de "continuidade delitiva"; ou o do indivíduo interessado em assumir a autoria de um crime que não praticou porque com esse elo será possível a formação de uma cadeia1367.

A criação do crime continuado, como hodiernamente posta, não nos parece que foi feliz.

Como pondera Hermenegildo de Souza Rêgo, o tratamento para esse assunto sempre foi insatisfatório. Lamentavelmente, a Lei n. 7.209/1984, longe de resolver os problemas que a matéria anteriormente colocava, agravou-os de forma considerável1368.

Efetivamente.

A lei atual concedeu ao delito continuado exagerada amplitude, permitindo que se preste a estímulo e incentivo da crescente criminalidade por agraciar os delinquentes.

Para os criminosos obstinados e recalcitrantes, a lei conferiu, com a criação da figura delituosa em tela, verdadeira carta de alforria e indulgência para delitos ulteriores que pratiquem, pois colocou os crimes supervenientes ao largo da esfera punitiva e possibilitou que os delinquentes contumazes se aproveitem de delito anteriormente cometido para a perpetração de novos crimes, os quais, agregando-se ao precedentemente realizado, submetem-se a única sanctio juris. Desta sorte, se alguém hoje comete um assalto e se futuramente perpetrar outros delitos de roubo, em condições de tempo, lugar e maneira de execução semelhantes, estes serão considerados continuação do primeiro, de modo que os demais crimes de roubo somente servirão para exasperar a pena (única) do delito primitivo. A unidade que o crime continuado possibilita, em sua desmesurada abrangência, torna impunes delitos posteriores e estimula os criminosos renitentes à sua prática, cientes que, como consequência da generosidade da lei, unicamente terão um simples acréscimo na reprimenda do primeiro crime.

Não hasteamos bandeira de detratores do delito continuado, mas somos defensores da necessidade da fixação de estreitas limitações à sua ocorrência, limitações estas que

Page 577

urge sejam introduzidas por meio da exegese do dispositivo que consagra esse formato de crime ou mediante futuras modificações legislativas.

Sob esse prisma, é facilmente admissível o crime continuado nas hipóteses do mordomo que furta, a cada dia, uma garrafa de vinho do patrão; do caseiro que submete a atos libidinosos a filhinha do proprietário toda vez que a criança é levada ao sítio; do caixeiro viajante que em cada cidade se apropria do dinheiro que tem em seu poder1369; daquele que numa só noite furta vários escritórios de um mesmo edifício1370ou, no exemplo de Hungria, do ladrão que, no curso de uma noite, subtrai, de vários quartos de um hotel, objetos pertencentes aos diversos hóspedes1371; do indivíduo que, ao perpetrar estelionatos, vende ações de uma sociedade fictícia e ludibria diversas pessoas1372; do empregado que diariamente subtrai, em detrimento do empregador, pequenas importâncias em dinheiro duma gaveta ou do caixa do estabelecimento em que trabalha; do pai que, abusando dos meios de correção e disciplina, maltrata seguidamente o mesmo filho etc.

Todavia, afigura-nos incoerente, em que pese a extensão feita por lei penal complementar (n. 7.209/1984), aceitar o crime continuado contra bens personalíssimos de vítimas diversas (cf. § único, art. 71, CP), com o reconhecimento dessa espécie de delito em dois ou três homicídios, dois ou três estupros contra ofendidos diferentes, dois ou três assaltos contra sujeitos passivos distintos etc.

Contudo, como não é possível trabalho de hermenêutica contra legem, e uma vez que, atualmente, ex vi legis, deve-se admitir a continuidade mesmo quando bens personalíssimos de vítimas diversas são atingidos, é preciso que os penalistas e operadores do direito assumam, agora, posição revestida de maior rigor e severidade na aferição dos pressupostos do delito continuado: que estreitem a sua passagem pelas portas do direito penal, para os criminosos recalcitrantes não acabarem premiados pela benesse com uma punição de indevida brandura. Postura contrária desarma a sociedade, em detrimento das exigências da defesa social.

A respeito, professou o Juiz Canguçu de Almeida, do então TACrimSP, que os critérios mais liberais de consideração da continuidade delitiva já não se ajustam aos tempos modernos, que não são de condescendência para com crimes e criminosos de alto calibre. A criminalidade prospera também porque estimulada por exagerados abrandamentos na imposição dos meios de prevenção. À medida que a criminalidade recrudesça e se agrave, pondo, a cada instante, mais e mais, em risco a segurança e a paz sociais, cumpre ao juiz reprimi-la, desestimulá-la e arrostá-la, mercê de uma mais adequada, mais oportuna e, quiçá, até mais rigorosa aplicação do direito1373.

Page 578

De tal arte, deve constituir preocupação do aplicador da lei penal a de restringir, e não alargar, o âmbito dentro do qual caiba a continuidade delitiva, para o instituto não padecer do estigma de incentivo à criminalidade.

O critério louvável, nesse passo, de se humanizarem as diversas penas corporais que seriam cabíveis não pode ter o azo, porém, de servir de estandarte de indenidade aos mais perigosos delinquentes, estimulando-os a enveredar pela senda delituosa com o fito de obterem o benefício para a aplicação de pena excessivamente benigna.

Por conseguinte, é imperioso examinar, cum grano salis, a configuração jurídica do crime continuado, aferindo-se, com vigor dobrado, da presença de seus pressupostos de constituição (crimes da mesma espécie e condições semelhantes de tempo, lugar e maneira de execução), aos quais se deve acrescer e, sobretudo, conjugar, como meio de obliterar a crescente criminalidade, a unidade de desígnio.

A finalidade do crime continuado "não é proteger os delinquentes habituais e perniciosos à sociedade; pois a perseveratio in crimine sempre foi havida como reveladora de periculosidade, como indício de incapacidade de adaptação à ordem legal e, portanto, como motivo de agravação da pena" (RT. 515/397). "A reiteração de crimes pelos delinquentes habituais não constitui continuação delitiva, mas atestado de temibilidade do delinquente" (JTACrimSP. 80/216). Por esse motivo é que "medidas de política criminal, como a da continuação, não podem beneficiar e estimular a habitualidade" (RT. 509/412), o que desarmaria a sociedade, "premiando a delinquência contumaz com inadmissível brandura" (RT. 448/412). "A perseverantia sceleris do criminoso habitual, a simples reiteração no crime, constitui índice seguro de que o agente o adotou como meio de vida. Basta isso para afastar a ideia de continuação nas ações delitivas" (RT. 524/399). "Não se pode confundir delito continuado com delito repetido, identificador do criminoso habitual (...)" (RT. 652/303)1374.

Segundo o voto do Min. Antonio Neder, do STF, no Rec. n. 81.107, de São Paulo, "o crime continuado é uma forma especial de concurso material de crimes e, por isto, seu reconhecimento deve ser feito com cautela, pois uma interpretação extensiva da norma que o define poderá transformar em letra morta a outra...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT