Crimes Contra a Honra

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas349-386

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11.1. Introito

A honra, a chamada incolumidade moral do ser humano, constitui o objeto de proteção das figuras típicas (calúnia, difamação e injúria) que, com suas peculiaridades, características comuns e dessemelhanças, serão examinadas neste capítulo.

A honra se desdobra sob duas faces: a honra subjetiva e a honra objetiva. A primeira é o bem jurídico penalmente tutelado com a incriminação do delito de injúria (art. 140, CP). A última é a objetividade jurídica que se intenta preservar com a punição estabelecida para os crimes de calúnia (art. 138, CP) e difamação (art. 139, CP).

Na avaliação da ofensa à incolumidade moral do indivíduo sempre devem ser mensuradas suas condições pessoais, suas relações com o possível ofensor e sua atividade profissional, com atenção ainda para o costume e meio ambiente em que se dá a possível contumélia.

A proteção à honra da pessoa é outorgada não somente no âmbito do Código Penal, mas ainda por meio de leis penais especiais (v.g.: crimes eleitorais).

A honra é também bem jurídico disponível e em relação a ela pode ter lugar o princípio da insignificância para a elisão da tipicidade.

Sobre o assunto, acima resumidamente colocado, v. - de forma mais abrangente e detalhada - o n. 1.7.

11.2. As espécies de crimes contra a honra, suas ações típicas e meios executivos

Como salientado, são três as modalidades de crimes contra a incolumidade moral (divisão tripartida): calúnia (art. 138, CP), difamação (art. 139, CP) e injúria (art. 140, CP). Os três delitos ofendem o mesmo bem jurídico penalmente tutelado: a honra alheia. É ela atingida no seu aspecto subjetivo pela injúria e é objetivamente violada com a calúnia ou difamação.

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A ação típica constitutiva do delito de calúnia (art. 138, CP) se expressa pelo verbo caluniar, que denota a conduta de maliciosa e falsamente indicar alguém como autor de um fato criminoso. A conduta há de ser realizada pela forma que o próprio tipo legal delitivo particulariza e determina, ou seja, por meio da imputação, propalação ou divulgação mendazes da autoria de um delito. A primeira modalidade executiva do crime em apreço vem inserida no caput do art. 138 do CP e as duas últimas no § 1º do citado dispositivo. Imputar significa atribuir e inculcar ao sujeito passivo, de forma primígena e falaz, a autoria de determinado acontecimento criminoso. Nesse caso, o agente cria e faz germinar a falsa notícia do crime ou de sua autoria. Propalar e divulgar exprimem repetir com falácia a notícia de fato delituoso que chegou ao conhecimento do agente, que toma de empréstimo a infâmia e se encarrega de dar-lhe prosseguimento. O sujeito ativo, então, leva adiante uma comunicação falsa defluente de outra anterior (a primígena). Tanto é caluniador, frisa Custódio da Silveira, o que imputa, inicialmente, o fato ofensivo à reputação alheia, quanto aquele que o transmite ou espalha urbe et orbe1015. As duas últimas modalidades executivas do crime diversificam-se, no entanto, no que tange à maneira como são realizadas. Na propalação a repetição do acontecimento se dá pelo relato oral e na divulgação por qualquer meio diverso da expressão verbal (forma escrita, por exemplo)1016.

Concerne a calúnia à falsa imputação a alguém de fato previsto como crime. A falsidade da imputação tanto pode recair sobre o próprio acontecimento (o fato é inexistente) como referir, alternativamente, à sua autoria (o episódio é verdadeiro, porém aquele a quem foi inculcado não foi o seu autor). É claro que o sujeito ativo deve estar ciente da mendacidade da notícia criminosa que imputa, propala ou divulga em relação a alguém ou, pelo menos, na imputação, deve assumir o risco de assim fazê-lo

(v. n. 11.6). Na insciência da mendacidade, há erro de tipo (v. n. 11.6). Se a indicação do fato criminoso for verdadeira, é translúcido que a calúnia deixa de tomar encarte típico, mas pode perfazer-se o crime de difamação (art. 139, CP), eis que este prescinde da mendacidade (infra). Não exime o sujeito ativo da calúnia, mediante a propalação ou divulgação, o fato de ele indicar sua fonte primitiva ou explicitar que se reporta ao que ouviu dizer ou mesmo que faça a revelação com ar de segredo. Pouco importa, inclusive, que a pessoa a quem foi feita a comunicação do fato já tivesse conhecimento dele, pois pode reforçar sua convicção e crença na veracidade1017. Também não afasta a configuração típica caluniosa mesmo que, com um protesto hipócrita, o agente afirme não acreditar na aleivosia1018. Tais expedientes representam, realça Hungria, as mais das vezes, o refalsado véu da maledicência como meio de facilitar a circulação da calúnia1019.

A calúnia atine a uma atribuição falsa (quanto ao fato ou sua autoria) de crime. Se a indicação mendaz se refere a uma prática contravencional o crime que se aperfeiçoa é o de difamação (art. 139, CP). Assim, há difamação - e não calúnia - se o agente

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afirma que determinada pessoa entrega-se à vadiagem (art. 59, LCP), explora jogo de azar (art. 50, LCP)1020ou que, ostentando reputação ilibada e até então incensurável, se embriagou em uma festa e causou escândalo (art. 62, LCP)1021.

O sujeito passivo da calúnia pode até não ser inteiramente inocente, mas se houver alteração fundamental do fato criminoso que lhe é atribuído o crime se configura. Exemplos: se alguém furtou e se diz que estuprou; se o crime foi culposo e se afirma ter sido doloso; se um homicídio é imputado a alguém e o caluniador sabe que foi cometido em legítima defesa etc. Calúnia deixa de haver, contudo, se a imputação falsa se refere a circunstâncias simplesmente acidentais (v. n. 2.7), como aconteceria na situação de quem efetivamente houvesse furtado e se dissesse, falsamente, que furtou com abuso de confiança (furto simples verdadeiro e furto qualificado inexistente)1022. É evidente que a expressão roubo, porque possui no jargão popular significação mais ampla que o seu termo jurídico e nessa acepção igualmente abrange qualquer delito de índole patrimonial como furto, apropriação indébita, peculato etc., não caracteriza o delito de calúnia quando a utilização da expressão foi tecnicamente inadequada no tocante a fato criminoso verdadeiramente verificado (dizer, por exemplo, que alguém teria roubado tal pertence de outrem quando, na realidade técnico-jurídica, o teria furtado ou dizer que alguém roubou quando, na qualidade de funcionário público, cometeu peculato ao desviar valores que detinha nesta qualidade em proveito próprio).

O fato criminoso atribuído à vítima deve ser determinado1023. Isso não quer dizer, entretanto, sob um crivo demasiada e exageradamente formalístico, que o fato deva ser pormenorizado, minucioso e detalhado, pois basta para os fins incriminadores da lei que possa ser individualizado e desde logo identificado pela sua concreção1024. Como a propósito aduz Giuseppe Maggiore, não merece acolhida a opinião segundo a qual um fato somente é determinado quando acompanhado da indicação precisa de tempo, lugar, modo, pessoas etc., isto é, quando está bem incrustado no anel das categorias aristotélicas: quis, quid, ubi, quare, quoties, quomodo, cuando (quem, o que fez, onde, por que, quantas vezes, de que maneira, quando)1025. Se de alguém se disser que é amigo do alheio ou ladrão, certamente não se individualiza fato algum e, portanto, em vez de calúnia, o que se apresenta é o delito de injúria. Diversamente, porém, tem-se a calúnia na asserção de que alguém furtou o automóvel de outrem ou de que se apropriou de valores que lhe haviam sido confiados, embora não se precisem dia, horário e local. É injúria, e não calúnia, afirmar que determinada pessoa é um tarado ou pedófilo, mas certamente é a calúnia que se aperfeiçoa se falsamente for dito que estuprou certa moça

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ou manteve relacionamento sexual com determinada criança. "A afirmação falsa de ter a querelante transformado a sua casa em rendez vous, fato que, se verdadeiro, constituiria infração penal, configura o delito do art. 138 do CP" (RT. 423/459).

A calúnia difere do delito de denunciação caluniosa, consagrado no art. 339 do CP. Neste há, de forma alternativa, a atribuição falsa de crime inexistente a alguém ou a indicação de alguém, sabidamente inocente, como autor de um crime efetivamente cometido, porém só com um detalhe, o que vem a distinguir a simples calúnia da denunciação caluniosa: neste delito se dá causa e ensejo à instauração de um procedimento de investigação contra o inocente, restando atingida, além da honra alheia, a administração da Justiça como bem jurídico penalmente tutelado. A denunciação caluniosa é, pois, crime pluriofensivo e sua prática absorve, ex vi da consunção, a simples calúnia (lex consumens derogat legi consumptae ou major aberbet minorem).

Na difamação (art. 139, CP), explicitado o núcleo do tipo pela conduta difamar, atribui-se ao sujeito passivo fato determinado desabonador, aviltante e depreciativo de sua reputação no círculo social em que é conhecido. O fato, ressalvada a sua veracidade, não deve constituir entidade criminosa, pois deslocará a tipicidade para a figura anterior (art. 138, CP) se a atribuição for falsa. Diferentemente da calúnia, no caso de difamação prescinde-se da mendacidade do fato. Mesmo verdadeiro basta o fato ser ofensivo ao conceito do indivíduo difamado, ser apto a suscitar a reprovação moral ou a desestima social da vítima, em suma, poder causar o descrédito do sujeito passivo perante a...

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