Crimes omissivos e imputação objetiva

AutorRuy Celso Barbosa Florence
Ocupação do AutorMestre e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Páginas153-177

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1. Constatação sobre a existência de um fato

A imputação objetiva, entendida como um método de análise do fato típico que tem por escopo, na aplicação da lei penal, atribuir responsabilidade àquele que determinou a violação de valores sociais, parte de dados confiáveis que permitam explicar a intervenção do Direito penal na atuação da sociedade. Os dados ditos confiáveis são todos aqueles que compõem a ação em sentido genérico, com toda a sua complexidade, e que devem ser analisados desde um ponto de vista ex ante, segundo os conhecimentos do nosso tempo, inferindo-se a partir daí pela imputação objetiva de uma ocorrência a alguém.

Nesse raciocínio, a constatação sobre a existência de um fato constitui-se no marco inicial para o desenrolar da reprovação penal por meio dos critérios da imputação objetiva.

Entretanto é importante anotar, desde logo, não ser correto equiparar uma simples ação ou omissão com a presença de um fato.

O fato aqui é tomado a partir da conduta, que será analisada por meio de uma teoria causal, que no caso brasileiro é a teoria da equivalência das condições, expressamente disposta no art. 13 do Código Penal.

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O texto do referido artigo, além de delinear a relação de causalidade, alicerçada na teoria da condição, estabelecendo que "causa será a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido", ainda orienta o processo de imputação sobre uma base pessoal, fixando que "o resultado de que depende a existência do crime somente é imputável a quem lhe deu causa". Orientação que torna indispensável que o resultado, quando existente, seja atribuído objetivamente como obra do agente. Posição esta, afinada com a teoria da imputação objetiva na tarefa de aplicação da lei penal àquele que, por obra sua, determinou a violação de valores vigentes.

Pois bem, como o mesmo dispositivo penal enfocado fixa como causa, tanto a ação quanto a omissão, admitindo assim a causalidade nos delitos omissivos, o processo de imputação objetiva deve ser a eles estendido, ainda que os métodos tradicionais de apuração da relação causal a eles não se apliquem.

Assim sendo, antes de se passar ao exame da forma como os critérios da teoria da imputação objetiva, a partir da tese de Claus Roxin, podem ser aplicados aos comportamentos penais omissivos, é preciso que se verifique, primeiramente, por quais caminhos se resolve a questão da causalidade nestes crimes, como prova da existência de um fato.

É o que será feito nos dois próximos itens deste trabalho.

2. A causalidade nos delitos omissivos
2. 1 Omissão própria

Considerado um dos grandes e lamentáveis problemas artificiais desenvolvidos dentro do Direito penal do séc. XX1, a causalidade nos crimes omissivos é apontada por Franz von Liszt2

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como uma das disputas mais inírutuosas que a ciência penal já sustentou.

As muitas e variadas teorias sobre a questão causal no Direito penal dedicaram-se quase que exclusivamente ao problema da causalidade nos delitos de ação, deixando em segundo plano as condutas omissivas, e especialmente as denominadas omissivas próprias.

A dificuldade em relação ao estudo da causalidade na omissão sempre residiu no fato de que, por uma ótica estritamente alicerçada na realidade natural, do nada nada pode surgir, ex nihi-lo nihilfit. Bem por isso, nem a natureza nem as ciências que dela se ocupam conhecem as omissões.

No entanto, uma vez que os problemas que devem ser enfrentados pelo Direito penal são distintos daqueles normalmente encontrados no mundo material, os recursos e instrumentos a serem utilizados na busca de soluções para tais problemas necessitam de características próprias.

Assim, tomada de frente a situação e admitindo-se que a omissão na ciência jurídica deve ser considerada a partir de um enfoque normativo, ou seja, um "não fazer algo devido e exigido pela lei", as dúvidas logo se dissipam.

A partir desse prisma, a impossibilidade lógica do ex nihilo nihilfit deixa de ter significado, numa demonstração de que não se está na verdade diante de uma relação causal, mas sim de uma relação imputativa, que se dá quando o direito enlaça uma determinada situação com o não cumprimento de uma obrigação que era concretamente exigível do sujeito.

Uma hipotética relação causal na omissão própria fica sem sentido, pois, partindo de uma suposição atrelada a uma exigência prévia de comportamento imposto pela lei, para assim poder ligar a uma sanção penal, em nada resulta, senão na constatação da imputação mesma. Não há razão para se fazer qualquer exercício hipotético diverso do caso concreto, pois se este já existe, e a exigência prevista na norma independe de qualquer resultado naturalístico para justificar a imposição da sanção, o que deve ser considerado para se conferir a relação imputativa é o próprio caso em si, já que empiricamente verificável.

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Para entendimento desse raciocínio, é preciso observar que a imputação objetiva não tem apenas uma raiz, podendo ser constatada tanto por meio da determinação da tipicidade da conduta quanto da conexão do evento com ela3.

Ainda, pela ótica desta teoria, em todos os casos em que os tipos penais se apresentam "carentes" de informações descritivas da conduta, devem eles ser completados com elementos normativos que permitam determiná-la mais além da mera realização externa descrita tipicamente4.

Esses elementos normativos, extraídos dos princípios nortea-dores da teoria da imputação, propiciarão a avaliação objetiva de um determinado comportamento, comissivo ou omissivo, como expressão de sentido do tipo que o descreve.

Por esse enfoque, tanto a omissão própria quanto todos os demais delitos sem resultado dispensam a constatação da causalidade natural, já que não a assimilam, mas possibilitam a verificação da imputação objetiva.

2. 2 Omissão imprópria

Como os delitos de omissão imprópria, diferentemente dos de omissão própria, são tipos de resultado, a causalidade nesses crimes tem sido discutida na doutrina por outros enfoques.

Dentre as muitas teorias sobre o tema, duas se destacam no círculo dos principais penalistas da atualidade que se propuseram a escrever sobre ele: a) a teoria da causalidade hipotética, divulgadora da fórmula da virtualidade causal da ação que deveria ter sido praticada para evitar o resultado; b) a teoria da diminuição do risco, que propõe a imputação do resultado da omissão ao garante sempre que a ação não executada pudesse ter diminuído o risco de lesão.

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A teoria da causalidade hipotética, prevalentemente adotada no Brasil5, afirma só ser possível imputar o resultado de uma omissão ao garante quando a ação omitida pudesse, com "altíssima probabilidade", tê-lo impedido. Trata-se, assim, de emissão de um juízo de probabilidade, e não de certeza ou de segurança de que a ação esperada e não praticada teria evitado o resultado.

Os defensores desta teoria, ao justificarem o porquê da ado-ção da referida fórmula virtual, apegam-se à premissa da impossibilidade de se obter uma certeza nas ocorrências de cursos causais de ações omitidas. Mas que, como acreditam, necessitam de uma resposta na causalidade.

O problema, entretanto, reside no fato de esta fórmula simples, alicerçada em leis da probabilidade, não atender às atuais ocorrências da sociedade, com seu alto grau de desenvolvimento não só tecnológico, mas também no campo da biologia, da medicina e outros.

Na sociedade moderna, as questões relacionadas com as omissões não se resumem em investigar se a intervenção de alguém em um curso causal de afogamento, p. ex., teria ou não evitado a morte da vítima, ou se a mãe que tivesse alimentado o filho teria impedido seu falecimento por inanição.

A expansão dos crimes omissivos transborda os limites do Direito penal tradicional, de cunho liberal, voltado exclusivamente à tutela de clássicos bens jurídicos individuais.

O caso Chernobil é, nesse sentido, modelar, pois ocorreu há mais de 20 anos, e até hoje, além de desconhecidos todos os seus efeitos, nem se sabe se já nasceram todas as suas vítimas. O que impossibilita se estabeleça, com a simples utilização do método da causalidade hipotética, uma satisfatória resposta causal para a situação e que atenda aos interesses do Direito penal.

Da mesma forma, embora em ocorrências individuais, não se pode, na atualidade, determinar com segurança se uma específica cirurgia de um tumor cancerígeno salvará o paciente, encurtará ou prolongará sua existência e, ainda, se a qualidade de vida, depois da cirurgia, justificará a ação médica extirpadora.

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Fixar em tal hipótese ou em outras semelhantes, uma omissão médica, apenas com base em probabilidade de ação não executada, é trilhar por caminhos contrários aos princípios de garantia do cidadão em um Estado Democrático de Direito.

Nesse estágio, a teoria da diminuição do risco surge exatamente como uma alternativa de superação das graves dificuldades em torno da assimilação e aplicação da teoria causal hipotética, partindo, segundo Gimbernat Ordeig6, de um diagnóstico lúcido da atual situação doutrinária.

Sendo impossível, conforme acima dito, determinar-se com segurança se a ação omitida teria evitado o resultado, e como mesmo a propalada "altíssima probabilidade" ou "probabilidade raiando a certeza" quanto a isso também não leva a lugar nenhum, pois ainda que tivesse o omitente atuado, apenas "provavelmente" teria evitado o evento, outro caminho deve ser adotado. É mais lógico e coerente se...

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