Crimes de Perigo

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas293-348

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10.1. Considerações gerais

Objetividade jurídica. Tratando dos crimes de perigo, a lei penal visa também tutelar a segurança da vida e da incolumidade das pessoas. Incrimina então condutas que, embora não propendam direta ou indiretamente para a lesão a tais bens jurídicos, os expõem, entretanto, ao risco e probabilidade de serem atingidos (v. n. 1.6). Considera-se, agora, não mais a ação lesiva ou danosa a esses bens jurídicos, mas aquela que lhes cria uma situação de instabilidade e precariedade. Sob esse prisma, há crimes de perigo comum e crimes de perigo individual (v. n. 1.6). O diploma penal cuida nos Capítulos III e IV do Título I da Parte Especial unicamente dos delitos de perigo individual.

Não encontra espaço, no que atine aos crimes de perigo, o princípio da insignificância (v. n. 1.6). Há mister ainda acentuar que a aquiescência da vítima nenhuma relevância tem - em princípio - na criação do perigo pelo sujeito ativo, ante a indisponibilidade do bem jurídico tutelado (v. n. 1.6), ressalvados os casos, é incontroverso, que configuram o exercício regular do direito (v. n. 9.5): atividades circenses como arremesso de facas, trapézio ou outras condutas como corrida de automóveis em circuito fechado, touradas, rodeios etc. Outrossim, resta desintegrado como componente do crime eventual perigo desencadeado por atividades socialmente úteis e adequadas

(v. n. 5.1.2).

Natureza do perigo. Em relação aos delitos de perigo, é fundamental perscrutar da natureza de cada um deles, o que se constata com suporte nas teorias subjetiva, objetiva e mista.

Pela teoria subjetiva, o perigo nada mais representa senão uma hipótese ou abstração, ou seja, uma situação que, segundo as regras da experiência comum, decorre normal e frequentemente (quod plerumque accidit) como efeito de certas condutas. É o perigo virtual ou presumido, igualmente denominado perigo abstrato.

Já para a teoria objetiva, o perigo deve ser um acontecimento real, instando que a sua ocorrência seja investigada e devidamente comprovada mediante a efetiva constatação de sua existência pelo conjunto de circunstâncias exteriores que a conduta incriminada tenha feito eclodir. É o perigo concreto.

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Com fulcro na teoria mista, mesclam-se as correntes de pensamento das duas teorias anteriores, para extrair-se a proposição segundo a qual o perigo, registra Anibal Bruno, exprime-se num duplo acontecer: na objetividade de circunstâncias que se encaminham para um resultado de ofensa efetiva do bem e, sob o aspecto subjetivo, num juízo, apoiado na experiência da vida, de que as circunstâncias dadas irão provavelmente conduzir à lesão do bem protegido788.

Assim, ressai induvidoso que o perigo encerra elementos normativos e também cognitivos em sua apreciação: é ele um dos fundamentos da punibilidade da tentativa, constitui a essência dos crimes a que empresta o nome e representa a base da periculosidade do agente que justifica a aplicação das medidas de segurança. Daí se vê que o perigo não é um componente aleatório na arquitetura e anatomia dos delitos que o têm como fundamento. Como pondera Nélson Hungria, se o perigo fosse uma simples impressão, com ele não poderia operar o Direito Penal, que deixaria de tutelar a ordem externa para proteger a impressionabilidade interna dos indivíduos789.

Elemento subjetivo. O elemento subjetivo que informa os crimes de perigo, com algumas e raras exceções que logo serão apontadas, é o dolo de perigo, diferencial importantíssimo que os destaca dos delitos de dano. Na essência, dolo de dano e dolo de perigo não apresentam distinção, pois não constituem espécies particulares de elemento subjetivo. Na verdade, na esfera psíquica do agente a configuração ontológica de ambos é a mesma e um só difere do outro pelo seu conteúdo, em razão do propósito que move o sujeito ativo. Destarte, é a finalidade com a qual o agente age a nota característica da diferença entre o dolo de dano e o de perigo.

No primeiro, o sujeito ativo atua, de forma comissiva ou omissiva, perseguindo a lesão ao interesse tutelado, visando a sua violação, e consuma o crime quando se verifica uma lesão efetiva ao valor protegido, resultado do delito. No homicídio, exempli gratia, o agente quer eliminar a vida da vítima, deseja causar-lhe a morte, e o óbito que produz consuma o crime. No furto, seu autor pretende a diminuição ou lesão, em proveito próprio ou de outrem, do patrimônio alheio. Na lesão corporal, quer ferir etc.

No dolo de perigo, que também pode ser direto ou eventual, a vontade do sujeito ativo não se direciona no sentido da ofensa ou lesão ao bem jurídico penalmente tutelado, pois ele busca - professa Anibal Bruno - apenas fazer nascer um conjunto de condições que levanta uma ameaça contra a segurança do interesse protegido790, de modo a, pela instabilidade criada, colocá-lo em risco. São delitos que se expressam não pela produção de um resultado de dano (que, muitas vezes, se verificado, poderá alterar o figurino típico), mas pelo surgimento de situação, criada pelo agente, que gera certa inconstância na segurança dos bens jurídicos tutelados, sem que ele tenha o escopo de causar lesão ao interesse protegido. O contrário configuraria tentativa de crime de dano.

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Nessa conjuntura, perfaz o dolo de perigo a conduta do motorista que passa com seu veículo rente a pedestre, visando a molestá-lo; do motorista que investe propositadamente com seu carro contra outro automóvel e intercepta a sua trajetória para dar-lhe uma "fechada"791; do motorista que arranca bruscamente com o automotor a fim de evadir-se do local quando instado à apresentação de documentos por policiais, de modo a colocar em perigo a vida ou a saúde do miliciano792ou até arremetendo o veículo contra o corpo deste quando tentava impedir a evasão, obrigando-o a saltar sobre o capô para não ser atropelado793; de quem dispara arma de fogo contra automóvel em movimento794, ou em local fechado onde há circunstantes795ou contra a mesa junto à qual se encontrava a vítima796, nestas últimas hipóteses em concurso formal com o crime do art. 15 da Lei n. 10.826/2003 (v. n. 10.2); do empresário que, por sovinice, constrange o artista circense a executar números perigosos sem providenciar os necessários dispositivos de segurança797; de quem faz um ébrio ou pessoa insciente montar um cavalo chucro798; de quem, por espírito de emulação, destrava portas de elevador de edifício, dando causa a que os usuários, desavisados do fato, corram o risco de se precipitarem no vazio do profundo poço do elevador799etc.

Como quer que seja, para o aperfeiçoamento do dolo de perigo e do delito que lhe corresponde, é preciso que o sujeito ativo conduza a sua conduta única e exclusivamente para a situação de risco ao bem jurídico, não podendo sua vontade transcender esse limite, eis que, se o ultrapassar, com a anuência ou o consentimento relativos à lesão, configura-se o dolo eventual de dano, com a tipificação da figura delituosa que lhe seja peculiar.

Desse modo, a assunção do risco relativo ao dano aumenta, acentua e intensifica o conteúdo do dolo e o transmuda para o dolo de dano, projetando a subsunção típica do episódio para outro e mais grave tipo delitivo. Assim, se o sujeito ativo dispara revólver no interior de estabelecimento em que haja outras pessoas ou lança o automóvel contra barreira policial, prevendo a probabilidade de atingir outrem fatalmente, e se ele se posiciona com indiferença diante dessa possibilidade, é inelutável que se descaracteriza o crime de perigo previsto no art. 132 do CP para tonalizar-se tipicamente - se houver o resultado de dano - o crime consumado de lesões corporais ou homicídio. Somente se o evento de dano - embora admitido como possível ou provável pelo sujeito ativo -não se produzir é que cabe cogitar do crime de perigo como residual ou remanescente típico, em face da inexistência de tentativa em relação ao dolo eventual800e por ser o dolo de perigo um prius ou minus no tocante ao dolo de dano.

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Há situações excepcionais, todavia, de delito de perigo informado pelo dolo de dano, como se verifica nas modalidades incrustadas nos arts. 130, § 1º, e 131 do CP. Em ambos os casos o sujeito ativo tem o desígnio de transmitir a outrem moléstia venérea (primeira situação) ou grave (última hipótese). No entanto, considera-se o crime consumado independentemente do efetivo e desejado contágio (mero exaurimento do crime), pois a figura típica se perfaz de forma concluída, completa, perfeita e acabada com a simples exposição ao perigo de transmissão de tais doenças. Na realidade - pontua Anibal Bruno - tem-se uma tentativa do fim realmente visado, mas que foi elevada à categoria de crime por si mesma801. Nessa vereda, diversamente das demais espécies de crimes de perigo, aquilata-se possuir o delito nestas duas citadas situações natureza formal, com sua consumação antecipada (tipos incongruentes ou de resultado cortado).

O diploma penal não previu punição a título de culpa para os crimes de perigo individual. Previsão essa necessária para que pudesse ter aperfeiçoamento o delito na modalidade culposa (v. n. 6.5). Sob esse aspecto, a culpa não tem ensejo para possibilitar a punição daquele que, ao realizar ação inadequada, desidiosa ou imprópria, exteriorizada pela imprudência, negligência ou imperícia, criar, involuntariamente, uma situação de risco a interesses ou direitos alheios. Desta sorte, o motorista que, imprudentemente, atravessa semáforo com luz vermelha e quase...

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