Crimes raciais e de intolerância no âmbito desportivo

AutorRafael Francisco Marcondes de Moraes
Páginas129-140

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1. Introdução

O desporto, vale dizer, a prática esportiva, compreende os exercícios ou atividades físicas por meio de participação ocasional ou organizada, que pode ser coletiva ou individual, e tem como objetivo primordial propiciar recreação e equilíbrio na saúde física e mental de seus praticantes.

A Constituição Federal brasileira incentiva explicitamente o esporte, estipulando como direito dos cidadãos e como dever do Poder Público estimular as suas práticas formais e informais, destacando seção e dispositivo próprio sobre a temática, assim dispondo em seu art. 217:

É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados:
I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II – a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento; III – o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional;

IV – a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.
§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.

Destarte, à luz do aludido fundamento constitucional, conquanto os esportes sejam praticados, pela maioria das pessoas, de maneira amadora, por mera diversão ou mesmo para manutenção ou obtenção de boas condições e aptidões físicas, há também o desporto profissional, bastante competitivo e importante fonte de rendimentos econômicos e de entretenimento, tornando o esporte tema que recebe e exerce intenso influxo na cultura, na educação e nas relações sociais de um modo geral.

Não por outra razão, os comportamentos observados no meio desportivo invariavelmente refletem hábitos e aspectos culturais de uma sociedade, em especial naquelas modalidades esportivas de maior popularidade.

Nesse contexto, as virtudes e os vícios nas atitudes e na mentalidade humana, em muitos episódios, são evidenciados, reproduzidos e até potencializados na esfera do desporto, cometidos contra e por atletas, torcedores e outras pessoas direta ou indiretamente envolvidas.

Sob essa perspectiva, no presente ensaio, pretende-se expor breves comentários e ponderações acerca de casos reveladores de manifestações de intolerância e preconceito no âmbito desportivo e suas respectivas e principais implicações criminais.

2. Discriminação, intolerância, preconceito e racismo

Para início de abordagem, mister se faz pontuar as definições que costumam ser adotadas para as expressões discriminação, preconceito, racismo e intolerância.

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De um modo geral, a nomenclatura “discriminação” representa uma violação ao princípio da igualdade, a partir da distinção, da exclusão, da restrição ou da preferência movidas por aspectos afetos à raça, à cor, ao gênero, à idade, a um credo religioso ou mesmo a convicções políticas.1

A palavra “intolerância”, por sua vez, significa a ausência de tolerância e corresponde à falta de compreensão ou aceitação em relação a algo, de modo que, um indivíduo intolerante, é aquele que exprime um comportamento de repulsa, repugnância ou ódio por algo que lhe seja diferente.

Já o termo “preconceito” consiste na opinião ou sentimento, favorável ou desfavorável, concebido sem exame crítico e sem maior ponderação ou conhecimento, ou ainda uma atitude, um sentimento ou um parecer ou manifestação insensata, assumido em consequência da generalização açodada de uma experiência pessoal ou sugerida pelo meio, por vezes desencadeando a intolerância.2

Por seu turno, o vocábulo “racismo” expressa o conjunto de teorias e crenças que pregam uma suposta e equivocada hierarquia entre as “raças” ou entre etnias, ou ainda uma hostilidade em relação a determinadas categorias de pessoas, e pode ser identificado como um fenômeno cultural presente em quase toda a história da humanidade.

A discriminação racial ou étnico-racial consiste em “toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada”, definição conferida pela Lei Federal n. 12.288, de 20 de julho de 2010, o denominado Estatuto da Igualdade Racial, em seu art. 1º, parágrafo único, inciso I.

Nesse panorama, relevante consignar que a expressão “raça” advém de uma noção de categoria de espécies de seres vivos, empregada na área da biologia como forma de classificação.

Entretanto, sob a perspectiva social, a utilização da expressão “raça” retratava senso comum para a determinação de grupos étnicos a partir de suas características genéticas.

Sob esse viés, as “raças humanas” seriam determinadas, sobretudo, pela cor da pele e alguns atributos físicos, associados também à origem social dos indivíduos, leitura essa superada e não mais adotada pela comunidade científica, mormente em virtude dos estudos sobre o genoma humano, que comprovaram não existir subgrupos de seres humanos, sendo, por isso, incorreto classificar negros, asiáticos, indígenas ou outros grupos como “raças” diferentes, consoante já articulado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do emblemático caso do editor Siegfried Ellwanger, relacionado ao Habeas Corpus n. 82.424-RS, adiante comentado e colacionado.

A visão sociológica e antropológica sobre o assunto determina que os diferentes grupos entre humanos consistem na verdade em etnias, que apresentam meras diferenças fenotípicas, como a cor de pele, mas, na essência, são todas iguais, ou seja, da mesma “raça humana”. Conquanto não exista um consenso, a ideia de etnia ou grupo étnico costuma abranger também aspectos culturais e não apenas físicos e genéticos, e classifica uma uniformidade cultural, com as mesmas tradições, conhecimentos, técnicas, habilidades, língua e comportamento.

De qualquer modo, não há como ignorar que no mundo todo pessoas são discriminadas em razão de suas convicções políticas, religiosas, orientações sexuais, condições sexuais, preferências ou estilos de vida e, de maneira mais contundente, quando consideradas sob o aspecto fenotípico, por suas “raças”, motivo pelo qual, para viabilizar a tutela legal e estatal, emprega-se ainda o vocábulo e a ideologia que ele representa.3

O racismo já causou vários e profundos estragos à humanidade em diversos momentos e lugares, principalmente no período da escravidão dos povos africa-nos de cor negra e no holocausto dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, impulsionando a crueldade e o covarde extermínio de milhares de seres humanos, a pretexto de serem tratados como supostos seres inferiores, que não mereceriam dignidade ou mesmo viver.

Logo, os pensamentos racistas (imbuídos de racismo) ou preconceituosos desdobram-se em condutas de

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intolerância e na sua manifestação mais acentuada refletida na discriminação, atos que, com o árduo aprendizado do tempo passaram a ser criminalizados justamente pela percepção de que atingem drasticamente bens jurídicos e acarretam sofrimento e barbáries entre os povos.

3. Crimes raciais e de intolerância

Em um sentido amplo, crimes raciais são todos aqueles que o mote da conduta praticada se concentra na ideologia racista, a partir de uma concepção e de uma postura preconceituosa e arrogante que considera um grupo como inferior e impregnado desse pensamento externar ofensas ou atos de segregação.

No mesmo diapasão, os crimes de intolerância, também chamados de “crimes de ódio”4 representam aqueles comportamentos em regra direcionados contra minorias existentes em determinadas sociedades, decorrentes de fanatismos e preconceitos, precipuamente envolvendo a cor da pele, a orientação sexual, a etnia, a idade, a deficiência física ou mental ou até a preferência por agremiações esportivas.

No campo criminal, tais condutas podem configurar desde delitos contra a honra, como injúria simples e a sua figura qualificada conhecida como injúria racial ou preconceituosa, passando por incitação ao crime, ameaças, lesões corporais, torturas, até os crimes resultantes de preconceito de raça da Lei Federal n. 7.716/1989 e o homicídio.

Assinala-se que, no Estado de São Paulo, a Polícia Civil paulista possui unidades especializadas, tratando-se da Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes Raciais e Delitos de Intolerância – DECRADI e da Delegacia de Polícia de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância Esportiva – DRADE.

A Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes Raciais e Delitos de Intolerância – DECRADI tem como atribuição reprimir e analisar delitos de intolerância definidos por infrações originalmente motivadas pelo posicionamento intransigente e divergente de pessoa ou grupo em relação a outra pessoa ou grupo e caracterizados por convicções ideológicas, religiosas, raciais, culturais e étnicas, visando à exclusão social. Investiga os fatos criminosos como injúria simples e racial, incitação ao crime, ameaça e lesão corporal. A unidade especializada é originária do Grupo de Repressão e...

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