Criminologia Crítica e Etiquetamento Social

AutorPollyana Elizabethe Pissaia
CargoAdvogada/PR
Páginas15-25

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Introdução

O paradigma etiológico explicava o crime como característica inata do sujeito, até que a necessi-dade de novas elucidações para os fenômenos fez com que a criminologia tradicional precisasse ser repensada. Fruto de muitos estudos e discussões, surge o paradigma da reação social e dentro dele a escola crítica da criminologia, capitaneada pelo jurista Alessandro Baratta e fundamentada por estudos não apenas jurídicos, mas filosóficos, sociológicos, políticos etc. Dentro deste processo de mudança paradigmática são contestados diversos postulados da criminologia tradicional, bem como da ideologia da defesa social, eis que estes postulados não mais justificavam a realidade cada vez mais dinâmica e conflituosa presente no século XX.

Diversos outros autores ao longo de décadas continuaram a tentar explicar e conceituar crime e criminoso, até que em meados da década de 1960 é criado o movimento da Criminologia Crítica, que visa entender o delito e o delinquente de forma diversa das abordadas anteriormente: tal teoria surge em um contexto de ebulição social onde novas respostas são necessárias.

Dentro da criminologia crítica desenvolve-se o estudo do labeling approach, também chamado de teoria do etiquetamento social, que nasce em meados de 1960 nos Estados Unidos, buscando encontrar novos rumos para a análise do crime e entendendo que este é apenas uma interpretação humana dos fatos observados, objetivando também novos caminhos que esclareçam quais os critérios geradores da criminalização.

O etiquetamento social refere-se a um estigma atribuído ao sujeito. Ocorre primeiramente transformando a imagem que a pessoa tem de si própria e secundariamente fazendo com que este indivíduo aceite e corresponda ao modelo que lhe é impingido. Desta forma o sujeito, que percebe durante toda a sua vida que lhe são atribuídas más condutas, tem maior probabilidade de real-mente vir a cometê-las, uma vez que já possui a "etiqueta" de criminoso, mesmo sem o ser. Neste sentido manifesta-se Baratta: "a criminalidade não seria um dado ontológico preconstituído, mas realidade social construída pelo sistema de justiça criminal através de definições e da reação social; o criminoso não seria um indivíduo ontologicamente diferente, mas um status social atribuído a certos sujeitos selecionados pelo sistema penal"1.

Os grupos sociais estabelecemse com base em crenças coletivas, que nem sempre são favoráveis a determinados grupos, especial-mente àqueles comumente estigmatizados, como os pobres, os homoafetivos etc. Estas parcelas da sociedade sofrem preconceito e invariavelmente lhes são atribuídas condutas criminosas pelo meio social, além de serem consideradas mais propensas ao crime do que outros segmentos sociais.

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1. Quebra do paradigma etiológico

O paradigma etiológico inicia o século XX na esteira da criminologia tradicional, fundamentado na Escola Positiva, entendendo o crime como inerente ao sujeito e diferenciando o criminoso dos demais cidadãos por supostas condições sociais, psicológicas ou biológicas presentes neste e que não existem nos demais sujeitos. Assim, segundo Baratta,

"O pressuposto de que parte a Criminologia etiológica (...) é que existe um meio natural de comportamentos e indivíduos que possuem uma qualidade que os distingue de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos: esse meio natural seria a criminalidade. Esse modo de considerar a criminalidade está tão profundamente enraizado no senso comum que uma concepção que dele se afasta corre o risco de, a todo o momento, passar por uma renúncia a combater situações socialmente negativas."2Este paradigma manteve-se na Europa, berço onde foi criado, até que em meados do século XX, principalmente nos Estados Unidos, passa a ser questionado na busca de respostas e adaptações à nova realidade social, que trazia diversas implicações criminológicas que demandavam questionamentos diversos dos adotados até então.

O momento histórico em que ocorreu essa cisão é norteado por várias formas de alteração política, social e cultural, que tiveram lugar contra os modelos até então existentes naquele país. Para exemplificar, é suficiente indicar as ações das mulheres e dos negros em busca da igualdade social, o movimento hippie, os protestos contra a guerra do Vietnã.

A luta pelo reconhecimento de direitos determinou a necessidade de novos paradigmas de ação e interpretação da realidade; dentro desta revolução, surgiram ainda questões relativas à estigmatização e criminalização das condutas, que careciam de uma nova forma de entender a criminologia.

Em razão desta situação fática, surgiu a necessidade de um novo paradigma que pudesse responder aos anseios sociais sobre a criminalidade.

1.1. Início do paradigma da reação social

Vários criminólogos passam a confrontar criticamente os princípios norteadores da ideologia da defesa social defendida pela criminologia tradicional e a nova realidade social, buscando respostas diversas para novos questionamentos; tais pesquisas modificaram o foco dos estudos criminais sobre o indivíduo criminalizado para o sistema penal e as instâncias criminalizadoras, tais como a sociedade, a polícia, o poder público e a mídia.

1.2. Superação dos princípios norteadores da ideologia da defesa social

A ideologia social era pautada por quatro princípios fundamentais: princípio da legitimidade; princípio do bem e do mal; princípio da culpabilidade e, por fim, princípio da negação ou da prevenção. Tais princípios serão avaliados sob o enfoque da nova criminologia, também chamada de crítica ou radical.

A legitimidade como princípio resulta controvertida, pois diz que todos os sujeitos possuem a tendência natural criminosa e a tentam reprimir. Neste sentido, não são mais legítimos que os sujeitos que exteriorizam o impulso delituoso. Porém, quando o meio social nota que alguns sujeitos exteriorizaram seu instinto delituoso natu- ral, passa a reprimir esses indivíduos, utilizando-os como "bodes expiatórios" para expurgar a culpa social, projetando nestes sujeitos o mal que reside em todos, "pois os mecanismos psicossociais da pena por elas ressaltadas, como, por exemplo, a projeção do mal e da culpa no ‘bode expiatório’, substituem as funções preventivas e éticas nas quais se baseia a ideologia penal tradicional"3.

O princípio do bem e do mal encontra réplica na teoria da anomia, que defende que o crime não é estranho à sociedade, que ele faz parte e sempre fará parte do meio social. É inclusive positivo na organização social por representar uma reafirmação das atitudes corretas a serem tomadas. Sendo assim, não existe a divisão entre o bem e o mal, o crime é normal, é um fator presente na sociedade e, em certos aspectos, possui um caráter prático ao preparar a socie-dade para novas transformações. Sobre o tema disserta Baratta:

"O delito (...) possui um papel direito no desenvolvimento moral de uma sociedade. Não somente deixa o caminho livre para as transformações necessárias, mas em determinados casos as prepara diretamente. Ou seja, o criminoso não só permite a manutenção do sentimento coletivo em uma situação suscetível de mudança, mas antecipa o conteúdo mesmo da futura transformação. De fato, frequentemente o delito é a antecipação da moral futura."4

A culpabilidade é contestada pela teoria das subculturas criminais, a qual assegura existirem diversas "culturas" e que o cidadão que contraria uma regra está infringindo norma de outro grupo cultural, diverso do seu e, portanto, não possui culpa de desconhecer o conjunto total de valores presentes na sociedade ou de simplesmente não conseguir ou não sentir necessidade de correspon-

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der a valores de um grupo diverso do seu. A falta de interação entre esses grupos leva cada vez mais os sujeitos a acreditarem e exteriorizaram os valores do seu bando, algumas vezes contrariando o que é considerado correto para os demais grupos e para o conjunto social. Em relação a esta temática expõe Baratta:

"A teoria das subculturas criminais nega que o delito possa ser considerado como expressão de uma atitude contrária aos valores e às normas sociais gerais, e afirma que existem valores e normas específicos dos diversos grupos sociais (subculturas). Estes, através de mecanismos de interação e de aprendizagem no interior dos grupos, são interiorizados pelos indivíduos pertencentes aos mesmos e determinam, portanto, o comportamento, em concurso com os valores e as normas institucionalizadas pelo direito ou pela moral ‘oficial’. Não existe, pois, um sistema de valores, ou o sistema de valores, em face dos quais o indivíduo é livre de determinar-se, sendo culpável a atitude daqueles que, podendo, não se deixam ‘determinar pelo valor’, como quer uma concepção antropológica da culpabilidade."5

O princípio da negação ou da prevenção é questionado pelas respostas das diversas pesquisas acerca da realização atribuída aos fins da pena. Constitui um fato que a cominação de penas ao sujeito que infringe normas sociais não impede que outros cometam os mesmos atos, pois, se assim o fosse, bastaria apenas uma sentença por homicídio que nunca mais haveria crime parecido, fato que não ocorre e provavelmente jamais ocorrerá; afinal, é consabido que nenhum indivíduo deixa de praticar ilícito penal em razão de pena...

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