Criminologia Feminista com Criminologia Critica: Perspectivas teoricas e teses convergentes/Feminist Criminology allied to Critical Criminology: theoretical perspectives and convergent theses.

Autore Weigert, Mariana De Assis Brasil
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  1. Introdução

    A tensão entre criminologia crítica e criminologia feminista, sobretudo nos planos epistemológico e político-criminal, é uma variável constante nos debates do campo há, no mínimo, três décadas. Embora muitas hipóteses tenham sido consolidadas, ainda existe um amplo espaço de problematização e, sobretudo, de aproximação entre ambas as perspectivas criminológicas.

    Neste cenário, os objetivos centrais do trabalho são (primeiro) delimitar os objetos de investigação das criminologias feministas e da criminologia crítica; (segundo) mapear os estudos criminológicos contemporâneos de corte positivista que possuem como objeto a mulher autora e vítima de delitos; e (terceiro) identificar as zonas de convergência entre as tendências crítica e feminista na qualidade de modelos contrapostos ao positivismo criminológico. Como ponto de partida, optou-se por identificar a permanência da criminologia positivista nas ciências criminais, inclusive com uma importante projeção nos estudos que envolvem crimes praticados por e/ou contra mulheres. A demonstração do atual estado da arte das investigações de corte etiológico sobre temas que envolvem estas espécies de crimes possibilita, inclusive, verificar os níveis de aproximação da criminologia positivista com algumas perspectivas liberais do feminismo.

    Fundamental referir que este ensaio é a primeira etapa de um projeto mais amplo que propõe discutir as convergências e as divergências entre feminismo e teoria crítica na criminologia. Neste momento, realizamos um esforço inicial para apresentar as pautas confluentes e harmônicas entre as criminologias feministas e crítica, notadamente no que diz respeito à dimensão negativa antipositivista. O estudo abre caminho para uma exploração seguinte, em fase de desenvolvimento, que ultrapassa os limites deste artigo, e que tem como objetivo: (primeiro) discutir os contrapontos nos planos epistemológico e político, inclusive político-criminal, apontando divergências reais e/ou aparentes; e (segundo) problematizar a necessidade de compatibilização ou de superação (dialética) dos modelos, notadamente em razão do respeito à identidade e à autonomia de cada perspectiva crítica. Alguns pontos de tensão entre as criminologias feministas e as criminologias (positivista e crítica) podem ser identificados no clássico debate proposto por Carol Smart (1990, pp. 71-84). Os problemas decorrentes desta tensão vem sendo aprofundados e sofisticados nas últimas décadas, tendo a criminologia feminista brasileira apresentado importantes conclusões ao apontar ser imprescindível que as criminologias estejam abertas e permitam ser atravessadas pelo feminismo, sobretudo nas suas dimensões interseccional e decolonial. (1) O diálogo entre os feminismos e a crítica permite, igualmente, que sejam realizadas as sempre necessárias autocríticas, não apenas no que diz respeito à percepção do limites de cada modelo (2), mas, sobretudo, as tendências colonizadoras. Neste sentido, fundamental ressaltar como a criminologia crítica, de base marxista, historicamente silenciou as questões de gênero e de raça. (3)

    O presente estudo concentra-se, porém, em uma etapa anterior (e menos tensa) das relações entre as criminologias feministas e crítica ao identificar uma hipótese comum convergente: o antipositivismo. Assim, procuramos mapear a atualidade das pesquisas criminológicas de base positivista centradas nas pesquisas sobre mulheres vítimas e autoras de delito a partir de determinados tipos criminológicos (homem-abusador; mulher-delinquente; e mulher-vítima) para, posteriormente, indicar zonas de convergência que permitem redimensionar as perguntas que entrelaçam as questões penal e criminal com as de gênero.

    A investigação se desenvolve a partir do levantamento das principais pesquisas sobre os temas, especialmente as pesquisas realizadas no Brasil, seguida de uma reflexão teórica que procura identificar uma hipótese comum ou uma identidade compartilhada entre a teoria feminista (criminologia feminista) e a teoria crítica (criminologia crítica).

  2. Os direitos das mulheres sufocados pelo positivismo criminológico (o homem criminoso, a mulher delinquente e a vítima nata)

    2.1. O salto qualitativo proporcionado pela criminologia crítica foi o de elevar as pesquisas nas ciências criminais da perspectiva micro à perspectiva macrocriminológica. Significa dizer que a criminologia crítica ampliou o campo de visão da criminologia (e também o do direito penal dogmático) ao orientar sua análise às violências estruturais e institucionais e aos fatores de vulnerabilidade e de seletividade que operam nos processos de criminalização. Se a criminologia ortodoxa (4) operou uma atomização do objeto criminológico aos conflitos interindividuais, procurando identificar nos atores diretamente envolvidos no delito os fatores explicativos da criminalidade (paradigma etiológico), a criminologia crítica redirecionou a lente com o objetivo de explorar os processos seletivos de criminalização e as violências produzidas pelas próprias agências responsáveis pelo controle penal.

    No que diz respeito especificamente às mulheres envolvidas em situações de violência, na qualidade de autoras ou de vítimas de crimes, a criminologia ortodoxa não procedeu de forma distinta, pois o conhecimento produzido sempre restou limitado à interpretação dos conflitos como resultado de uma dinâmica estritamente individual e privada (microcriminológica). Assim, no marco do positivismo criminológico, as violências que envolvem as mulheres foram inseridas em um horizonte de investigação cuja base interpretativa era (e em grande medida continua sendo) causalista.

    Neste cenário de ingerência científica delimitado pelo paradigma etiológico figuram, como objeto de investigação, alguns personagens que foram elevados a tipos criminológicos: (primeiro) o homem-abusador; (segundo) a mulher-delinquente; e (terceiro) a mulher-vítima.

    2.2. Nas pesquisas ortodoxas sobre o homem delinquente, a classificação e a caracterização dos agressores que praticam violências contra as mulheres são realizadas basicamente a partir da espécie do delito cometido. As imagens do delinquente concentram-se fundamentalmente em três estereótipos criminais não excludentes: os criminosos sexuais (estupradores), os feminicidas e os agressores domésticos.

    A elaboração de tipologias sobre delinquentes sexuais sempre foi uma das principais tarefas impostas pela criminologia etiológica. Não apenas pela associação tradicional da imagem do estuprador com um sujeito irracional e insano, mas pela própria representação social do estupro como um dos crimes mais graves e bárbaros que atingem as sociedades civilizadas. (5) Não por outra razão, este tipo criminológico é central nas análises dos fatores psicológicos da conduta delitiva, notadamente no que tange à identificação e à classificação de transtornos de personalidade associados ao crime. (6) Sobretudo nas investigações que aproximam criminologia ortodoxa e psicologia cognitivo-comportamental, ainda são muito frequentes trabalhos acadêmicos orientados à elaboração de perfis de estupradores, à identificação da disfunção psicológica que causa a violência sexual e, em consequência, à construção de instrumentos de avaliação e predição de crimes sexuais. (7)

    Os estudos da criminologia positivista sobre as formas de violência contra as mulheres desdobraram uma série de pesquisas contemporâneas direcionada à categorização etiológica, como, p. ex., de identificação do perfil criminológico do feminicida (8) e do agressor doméstico (9), e, especialmente no campo da saúde, de mapeamento epidemiológico da violência doméstica. (10)

    2.3. O campo de análise da criminalidade feminina se desenvolveu, originalmente, através da transferência e adaptação das categorias antropológicas, biométricas e psicológicas de classificação para a elaboração de um tipo criminológico da mulher-delinquente.

    O trabalho que inaugura os estudos sobre a criminalidade feminina é o livro de Lombroso e Ferrero, "A Mulher Delinquente, a Prostituta e a Mulher Normal", de 1893. Na obra, Lombroso e Ferrero delimitam as espécies de delitos praticados pelas mulheres (delitos de paixão, delitos sexuais, delitos da maternidade etc.) e apresentam as características patológicas e antropométricas e os aspectos biológicos e psicológicos da mulher-delinquente e da prostituta. Assim, criam uma taxionomia similar àquela que anteriormente definiu o homem criminoso: a criminosa-nata, ocasional ou passional; a prostituta-nata e ocasional; as loucas, epiléticas e histéricas (Lombroso, & Ferrero, 1903, pp. 181-187, pp. 261-324 e pp. 371-626). (11) Chama a atenção na tipologia a inserção de uma categoria própria para as criminosas: as histéricas. Assim, a associação desta espécie de enfermidade mental ao sexo feminino irá, gradualmente, vincular às mulheres criminosas também o estigma de louca. Ademais, esta explicação fornecia uma resposta relativamente adequada à grande questão que moveu os estudos criminológicos em relação à delinquência feminina: "por que mulheres delinquem menos que homens?" E em que pese o pensamento criminológico sempre ter afirmado uma diferença quantitativa dos crimes praticados pelas mulheres em relação à criminalidade masculina, qualitativamente o efeito punitivo sempre foi substancialmente mais severo, visto o processo de psiquiatrização a que as mulheres historicamente foram (e são) submetidas no interior das agências de punitividade (Weigert, 2017a, pp. 105-140; Weigert, 2016, pp. 131-150). Assim, ao mesmo tempo em que são invisibilizadas no sistema penal em decorrência da baixa incidência de crimes, a resposta fornecida pelas ciências criminais (âmbito científico) e pelas agências do Estado Penal (esfera politico-criminal) é amplificada, pois conjuga práticas punitivas e psiquiátricas a partir deste diagnóstico que combina doença mental/delito/gênero.

    Para além destas perspectivas biopsicológicas que fundamentaram as análises...

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