Crise dos derivativos: reforma dodd-frank e o clearing centralizado

AutorSamy Sanches de Almeida
Páginas167-185

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1. Lei Dodd-Frank e iniciativas europeias

Produtos financeiros gestados no mercado financeiro americano foram fortes protagonistas de uma das mais graves ameaças à organização econômico-social vivenciada em tempos recentes. O colapso da ciranda financeira, e seu choque sobre as atividades produtivas, sinalizaram tempos tão sombrios para o início do século XXI quanto a Grande Depressão de 1930. Não fossem as maciças intervenções estatais para socorro de instituições moribundas, o mundo não estaria voltando, no início de 2011, aos níveis econômicos anteriores à Crise dos Derivativos. Mas além das medidas de urgência, revisões conjunturais serão igualmente importantes.

Grande avanço, naturalmente, foi a aprovação da Dodd-Frank Wall Street Re-form and Consumer Protection Act ("Lei Dodd-Frank") em julho de 2010, a qual representa a mais ampla revisão regulatória do sistema bancário-financeiro dos Estados Unidos desde a década de 1930. De um vastíssimo conteúdo de mais de 800 páginas, uma das marcas principais da nova lei é seu capítulo VII, o qual pretende trazer nova roupagem aos derivativos negociados fora de bolsa (over-the-counter). Por seu turno, e à reboque das medidas adotadas nos EUA, veremos muitas das características da Lei Dodd-Frank no projeto de regulação de derivativos proposto pela Comissão Europeia (COM(2010) 484/5), o qual pende de aprovação pelo Parlamento Europeu.

Assim, em vista da abrangência global dos derivativos, tanto a Dodd-Frank quanto a proposta europeia atenderão à agenda definida pelo G-20 de tornar tal mercado um ambiente mais transparente, íntegro e sujeito à regulação. Neste aspecto, embora as particularidades do sistema bancário brasileiro tenham evitado no país os mesmos problemas vistos no exterior, o tamanho e a importância do mercado de

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derivativos no mundo recomendam o acompanhamento detido das reformas em curso, particularmente nos EUA.

Deste modo, este trabalho abordará a mecânica de funcionamento dos produtos financeiros que operaram na eclosão e disseminação da crise a partir dos EUA, bem como analisará como Lei Dodd-Frank, atualmente em fase de regulamentação, tenta atingir as causas do problema. Embora a reforma financeira na Europa não tenha sido iniciada, muitos conceitos abordados neste artigo serão aplicados, em menor ou maior escala, pelas nações europeias que revisarem seus sistemas bancários e financeiros.

2. Crise: as origens

As expressões "Crise dos Derivativos", ou "Crise", conforme aqui aplicadas, dirão respeito ao ciclo de depressão financeira iniciada nos EUA em 2007, com a quebra do banco Bear Stearns (socorrido pelo governo americano e comprado pelo banco JP Morgan Chase), e que, em setembro de 2008, foi profundamente agravada com o pedido de recuperação judicial do banco Lehman Brothers.

Dentre os fundamentos da Crise dos Derivativos, a literatura americana é virtualmente unânime em indicar a participação de dois instrumentos financeiros, quais sejam: (i) derivativos de crédito, especialmente o Credit Default Swap (CDS), e (ii) os Collateralized-Debt Obligation (CDO) - títulos garantidos por renda fixa - relacionados a financiamentos hipotecários. Utilizados de forma combinada, CDSs e CDOs teriam gerado uma intensa distribuição de riscos de crédito que culminariam na quebra, ou socorro, de diversas instituições tradicionais dos Estados Unidos.

Claro que muitos outros componentes do sistema financeiro americano (ativida-des ao largo da regulação, concentração de riscos em enormes instituições, alta ala-vancagem, complacência de agências de classificação de risco etc.) também se somaram ao conjunto de distorções que culminaram com a Crise. No entanto, em vista da particular relevância destes instrumentos, o foco do presente artigo será o funcionamento do CDS, do CDO e a resposta da nova regulação.

Para que se entenda vivamente a Crise dos Derivativos e a reforma em execução pelos reguladores americanos, partiremos da caracterização de tais instrumentos financeiros e, a seguir, identificaremos como contribuíram com a Crise. Em seguida, examinaremos os aspectos centrais do Título VII da Lei Dodd-Frank, o qual trata da submissão destes produtos à compensação (clearing) centralizada.

2. 1 "Credit Default Swaps" (CDS): características e histórico

De forma geral, "derivativo" designa um contrato bilateral que transfere risco de uma parte para outra e cujo valor é derivado de um certo preço, taxa ou índice.1 Tipos básicos de derivativos são os contratos de Swap, Futuros, a Termo e as Opções. Dentre os derivativos tipo Swap, um dos principais no cenário mundial é o Credit Default Swap (CDS).

O CDS é um contrato no qual o risco de uma ou mais entidades referenciadas é transferido de uma parte (vendedor) a outra (comprador). Em um contrato CDS, o vendedor se obriga a indenizar o comprador na hipótese de ocorrer um "evento de crédito" (inadimplência, por exemplo) com a entidade referenciada. Em contrapartida, o comprador paga ao vendedor uma porcentagem sobre o valor do contrato, o qual é chamado de spread. O CDS, como se nota, muito se assemelha a um clássico seguro contra riscos de crédito.

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Figura 1

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Como exemplo meramente fictício de CDS, tomemos uma dívida (bond) de US$ 100 mil emitida pela General Motors e comprada pelo investidor George Soros. Este investidor, temendo que a General Motors não pague pelo bond (juros ou principal), procura um vendedor de CDS (nos EUA, um banco, seguradora ou outra instituição financeira) e contrata proteção para o caso de ocorrência de um evento de crédito com a GM ou seu bond (i.e., inadimplên-cia, falência, reestruturação de dívida, pagamento antecipado e moratória). Para tanto, o Sr. Soros paga ao vendedor um spread. Assim, em caso de não pagamento da dívida pela General Motors, o comprador do CDS, George Soros, cede o título (bond) da GM ao vendedor, que então lhe paga US$ 100 mil.

Além disso, figura comum em tais transações é a obrigatoriedade das partes depositarem margens de garantia (colateral) ao longo da execução do contrato, as quais buscam assegurar a obrigação assumida pelo depositante. Para que o processo de colocação de margens seja eficiente, as posições das partes são usualmente "marcadas a mercado", vale dizer, a posição diária do vendedor e do comprador (ou em frequência inferior) é revista para refletir o valor real de sua posição no momento da avaliação. Tomemos então o exemplo General Motors: se o vendedor ofereceu um CDS ao George Soros com relação ao bond GM, as cláusulas do CDS preveem que a queda no valor da GM (ou a queda na classificação de risco de seu bond) representa maior risco de que a GM não honrará o pagamento da dívida. Neste momento, o ven-dedor deverá aumentar a margem, ou seja, depositar dinheiro (ou outro ativo líquido) que represente alguma fração do valor que deverá pagar ao investidor Soros em caso de inadimplência da GM. Quanto pior o risco do bond GM, maior o valor do colateral a ser colocado pelo vendedor.

Visto desta maneira, o CDS é uma simples transação bilateral, negociada caso a caso. No entanto, a realidade deste mercado, impulsionada principalmente por instituições americanas, foi um tanto diferente. Estando ao largo da regulação bancária dos EUA até a edição da Lei Dodd-Frank (e até que venha sua plena regulamentação), o CDS passou por intensa mecanização com a alta padronização de seus contratos, a possibilidade de existirem múltiplas entidades referenciadas e a previsão de liquidação financeira no lugar da cessão física da dívida. Todos estes elementos possibilitaram que sua utilização ganhasse escala e extrapolasse muito a mera função de seguro. De fato, compradores passaram a adquirir CDS em transações naked, ou seja, sem estarem diretamente expostos ao risco subjacente (no nosso exemplo, sem possuírem qualquer dívida da GM).2 Examinemos assim como a instrumentalização do CDS permitiu sua utilização em massa.

2.1. 1 Revolução do CDS: padronização, múltiplas entidades e liquidação financeira

Sobre a uniformização de contratos e práticas relativas ao CDS, notaremos que muito embora tais contratos sejam teoricamente negociados caso a caso, a International Standard and Derivatives Associa-tion (ISDA), organização privada composta por instituições financeiras, promoveu sua uniformização. Tal processo se dá pela

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publicação de uma estrutura contratual padronizada amplamente utilizada pelo mercado,3 o que permite maior segurança e repetição nas transações.

Sobre a noção de múltiplas entidades referenciadas, trata-se da possibilidade de um mesmo contrato CDS oferecer proteção a todo um conjunto de riscos. Exemplos de tais CDS "multinome" são ofirst-to-default basket swap, no qual o comprador, detentor de diversos títulos de dívidas (bonds da General Motors, General Electric, Citibank ou quaisquer outros), recebe a garantia de que o primeiro evento de crédito envolvendo alguma destas entidades (falência de algum deles, por exemplo), implicará em recebimento da indenização. Com o pagamento, encerra-se o contrato CDS e eventuais novas inadimplências não estarão cobertas. CDS second...

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