Crises, disputas e resistências: os territórios tradicionais das comunidades pesqueiras e quilombolas da Ilha de Maré ? BA

AutorKassia Aguiar Norberto Rios
CargoDoutora em Geografia pela Universidade Federal da Bahia; Professora Adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia; Coordenadora do Grupo de Pesquisa Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Comunidades e Territorios Tradicionais - LIECCTT (UFRB/CETENS/CNPq); Pesquisadora do Grupo de Pesquisa GeografAR ? A Geografia dos Assentamentos...
Páginas184-209
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 45, n. 251, p. 716-741, set./dez., 2020 | ISSN 2447-861X
CRISES, DISPUTAS E RESISTÊNCIAS: OS TERRITÓRIOS
TRADICIONAIS DAS COMUNIDADES PESQUEIRAS E
QUILOMBOLAS DA ILHA DE MARÉ BA
Crises, disputes and resistance: the traditional territories of fishing communities
and quilombolas in the Maré Island BA
Kássia Aguiar Norberto Rios
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB
Informações do artigo
Recebido em 02/09/2020
Aceito em 09/09/2020
doi>: https://doi.org/10.25247/2447-861X.2020.n251.p716-741
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Como ser citado (modelo ABNT)
RIOS, Kássia Aguiar Norberto. Crises, disputas e
resistências: os territórios tradicionais das comunidades
pesqueiras e quilombolas da Ilha de Maré BA.
Cadernos do CEAS: Revista Crítica de Humanidades.
Salvador/Recife, v. 45, n. 251, p. 716-741, set./dez. 2020.
DOI: https://doi.org/10.25247/2447-861X.2020.n251.p716-741
Resumo
Este artigo tem por objetivo apresentar uma análise do cenário de crise s,
disputas e resistências que envolve as comunidades tradicionais
pesqueiras e quilombolas da Ilha de Maré, Salvador Bahia. Uma das
temáticas que tem ganhado relevante destaque, nas últimas décadas,
refere-se às inúmeras disputas e conflitos territoriais que as comunidades
tradicionais pesqueiras têm vivenciado nos seus territórios. No estado da
Bahia esse cenário envolve cerca de 600 comunid ades e mais de 100 mil
famílias, dentre as quais destacamos aquelas situadas na Ilh a de Maré,
localizada na Baía de Todos os Santos (BTS). Possuidoras de um amplo
conhecimento sobre as água s, os manguezais e os pescados da BTS, a
relação de apropriação desenvolvida por essas comunidades com a
natureza é caracterizada por extremos laços de identidade,
pertencimento e, principalmente, respeito, onde são desenvolvidos
valores simbólicos e materiais que asseguram o seu modo de vida e
configuram suas territorialidades. Te rritorialidades que têm s ido
intensamente ameaçadas e, em alguns casos, destruídas, pelo modelo de
desenvolvimento historicamente empregado no local. Observa-se que os
espaços que eram de uso das comunida des, aos poucos, foram sendo
ocupados, delimitados e controlados por novas e di stintas atividades
(aquícola, portuária, metalúrgica, petroquímica, turística etc.),
originando inúmeras crises sociais, econômicas, ambientais, além das
disputas territoriais. Para o desenvolvimento da análise, recorremos
metodologicamente às técnicas da pesquisa participante com a utilização
dos seguintes instrumentos: levantamento bibliográfico, documenta l e,
principalmente, de campo, com a realização de reuniões, participação em
audiências públicas, oficinas de geografia e cartografia, mapeamento e
georreferenciamento dos territórios em disputa.
Palavras-Chave: Crises. Disputas. Resistência. Territórios. Pesca.
Abstract
This paper aims to present an analysis of the crisiss disputes and
resistances scenariosthat involves the traditional fishing and quilombola
communities of Maré I sland, Salvador - Bahia.Ce rtain issue that has
gained relevant prominence in the last decades, refers to the countless
territorial disputes and conflicts that traditional fishing communities have
experienced in their territories.In the Bahia State, this scenario invo lves
about 600 communities and more th an 100 thousand families, among
which we highlight those located on MaréIsland, located in the Todos os
Santos Bay (TSB).These communit ies have a broad knowledge of the
waters, mangroves, and f ishes of TSB. The relationship of appropriation
developed by these communities with Nature is based onprofound ties to
identity, belonging feelings and, above all, respect, where sym bolic and
materials that ensure their way of life and co nfigure their
territorialities.Territorialities that have been intensely threatened and, in
some cases, destroyed, by the development model that has been
historically employed on the site.We observed places that were used by
the communities in which were gradually being occupied, delimited, and
controlled by new and distinct activities (aquaculture, port, metallurgy,
petrochemical, tourism, etc.). This led to numerous social, economic, and
environmental crises, in addition to territorial disputes.For the
development of analytical goals, we used methodologically the
techniques of action-research using the following instruments:
bibliographic, do cument registration and mainly field surveys, with
meetings, joining in public hearings, geography and cartography
workshops, mapping and georeferencing disputed territories.
Keywords: Crises. Disputes. Resistance. Territories. Fishing.
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 45, n. 251, p. 716-741, set./dez., 2020
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Crises, disputas e resistências: os territórios tradicionais das comunidades pesqueiras e quilombolas | Kássia Aguiar
Norberto Rios
Introdução
Uma das temáticas que tem ganhado relevante destaque, nas últimas décadas,
refere-se ao cenário de inúmer as disputas e conflitos terr itoriais que as comunidades
tradicionais pesqueiras têm vivenciado nos seus territórios. No estado da Bahia esse cenário
envolve cerca de 600 comunidades e mais de 100 mil famílias, dentre as quais destacamos
aquelas situadas na Ilha de Maré, localizada na Baía de Todos os Santos (BTS), recorte
empírico analítico desse artigo.
Na Ilha de Maré, pode-se dizer que esse cenário tem origem ainda no século XVI,
quando da ocupação do Recôncavo Baiano por inúmeros engenhos de cana-de-açúcar e
fazendas. Com a chegada dos portugueses e, posteriormente, a constituição dos primeiros
engenhos, deu-se início a um longo processo de ocupação das terras que configuram, hoje,
os municípios localizados no entorno da BTS, a incluir as Ilhas de Maré, dos Frades, entre
outras.
A inserção dos engenhos e fazendas na )lha além de demarcar a propriedade privada
das ter ras ocasionou a expulsão de in’meros indígenas e campesinos livres Fato que se
intensificou/consolidou no ano de 1850, com a Lei de Terras. De acordo com os moradores da
Ilha, nesse período, cerca de 60% do território local já se encontrava nas mãos dos senhores
de engenho e alguns fazendeiros. Décadas depois, com a abolição da escravatura, no ano de
1888, e o declínio da indústria açucareira, novos processos de oc upação da terra são
desenvolvidos, em especial pela atividade da agricultura e pecuária. Ne sse período, muitos
senhores de engenho comercializaram parte de suas terras com fazendeiros da região, além
da ocupação de outras áreas de mata por novos proprietários
É desse processo de ocupação/comercialização de terras que surgem as primeiras
crises e disputas territoriais envolvendo principalmente os quilombos  constituídos em
Maré e os fazendeiros que reivindicavam a propriedade da terra.
Observa-se que os acontecimentos/processos históricos oc orridos na época (Lei
Terras, abolição da escravatura, decadência da indústria açucareira e novos pr ocessos de
ocupação de terras desencadeados pela agricultura e pecuária) conformaram um novo
cenário, quando inúmeros ex-escravos e campesinos livres encontravam-se sem terra e/ou
sem trabalho. Na época, a alternativa existente era o trabalho nas fazendas, no qual as

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