Quando Cristo Limita César - Para uma Moderna Reavaliação da Dicotomia entre Poder Político e Poder Religioso

AutorLeandro Soares
CargoAluno de graduação do Curso de Direito da Universidade de Brasília

Em sua obra mais conhecida, "Do Contrato Social", Rosseau analisa, no Livro Quarto, Capítulo VIII, as implicações do elemento religioso com relação ao poder político. Classifica então as religiões em 3 (três) espécies, de acordo com a relação entre estas e o Estado, assim denominando-as: religião do homem, religião do cidadão e religião do padre.

A chamada religião do homem seria, segundo Rosseau, aquela voltada exclusivamente para o indivíduo, impondo-lhe a observância de determinados preceitos morais sem qualquer relação com o corpo político. O adepto de tal religião, embora sendo um respeitador das leis e da sociedade na qual se insere, não está comprometido com o Estado, para afirmar ou contestar seu poder. Está alienado da sociedade política, pois busca uma "pátria no céu".

A segunda espécie de religião, a do cidadão, caracteriza-se por estar extremamente associada ao Estado, de modo que não há distinção entre político e religioso. É esta a chamada religião dos "Estados teocráticos", nos quais servir a Deus é servir ao rei, e o chefe político é também o sacerdote.

Finalmente, a terceira espécie, que o autor denomina religião do padre, é a que estabelece uma contraposição radical entre o poder político e o poder religioso, impondo a seus adeptos deveres contraditórios. Há, pois, para o devoto da religião do padre, o dever de obediência a um chefe e uma lei que põem ao lado do chefe político e da lei do Estado, gerando inevitável conflito, pois o político e o religioso disputam o mesmo espaço.

Ao concluir o capítulo em exame, Rosseau estabelece um princípio que viria a ter unânime aceitação no âmbito do pensamento político contemporâneo: "Ora, importa ao Estado que cada cidadão tenha uma religião que o faça amar seus deveres; os dogmas dessa religião, porém, não interessam nem ao Estado nem aos seus membros, a não ser enquanto se ligam à moral e aos deveres que aquele que professa é obrigado a obedecer em relação a outrem"1. Assim, "não pode mais existir qualquer religião nacional exclusiva"2, devendo o Estado "tolerar todas aquelas que toleram as demais, contanto que seus dogmas em nada contrariem os deveres do cidadão"3. Tal é o princípio do Estado leigo, i.e., da sepração entre o poder político e o poder religioso.

Não se pode, porém, sob pena de se caminhar para uma análise perfunctória do tema, estabelecer essa total distinção entre o poder político e o poder religioso. A principal razão dessa assertiva reside no fato de que, em sua origem, o poder se mostra uno e indivisível, não se concebendo, primitivamente, qualquer manifestação de poder que não fosse de natureza político-religiosa.

Nas primeiras sociedades humanas, religião e poder político se acham ligados de forma indissolúvel. O chefe político é, por vezes, o próprio Deus. Em outros casos, é um homem com poderes especiais, um mensageiro do seu deus para governar o grupo. De qualquer modo, porém, o governante é sempre um homem sagrado, tendo a religião como elemento primordial a conferir legitimidade ao seu poder. Com efeito, o homem primitivo não admitia outro tipo de autoridade que não tivesse natureza religiosa, sendo que até mesmo o próprio governante estava imbuído da crença de que o seu poder lhe fora concedido pelos deuses, ou decorria de sua própria divindade.

Não se pode afirmar, portanto, que o poder religioso fosse mero instrumento do poder político, ou vice-versa. Esses elementos se fundiam então numa mesma realidade, a qual, longe de ser manipulada pelos homens, subjugava-os totalmente. Assim, os elementos religioso e político do poder apresentam essa unidade que advémde sua nascente comum no seio das sociedades humanas. Enquanto o elemento religioso se apresenta como legitimação do elemento político, este se impõe como meio de realização daquele outro.

Verifica-se também a impossibilidade de uma total separação entre o poder político e o poder religioso na própria articulação lógica dessa separação, expressa por Rosseau. É que, se o Estado afirma a sua tolerância para com toda e qualquer religião que tolere as demais e respeite o direito, vem conferir, a um só tempo, liberdade e limitação às manifestações religiosas. A religião, considerada genericamente, apresenta dois espaços de realização: o intra-subjetivo, que se relaciona com o indivíduo isoladamente (v.g. amor a Deus, sinceridade, fé, etc); e o intersubjetivo, que aponta para as relações dos homens entre si, como o mandamento bíblico que ordena ao homem não matar seu semelhante. Ora, se o Estado subordina a religião ao direito, o qual é norma intersubjetiva em essência, não apenas limita o poder religioso no que tange à sua realização intersubjetiva, mas também se coloca, ele mesmo, como detentor de um poder que, originalmente, é...

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