O critério da impontualidade na decretação da falência no direito contemporâneo: o Projeto de Lei n. 071/2003 do Senado Federal

AutorFelipe Fernandes Ribeiro Maia
Páginas142-163

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I - Nota preliminar

Sabe-se que "nenhuma lei é mais discutida que a de falências. E é natural. Capital, trabalho e fisco perdem no desastre econômico do devedor. Além dos juristas, opinam os leigos, os jornalistas apressados, e, quase sempre tardiamente, as associações das classes conservadoras. Todos acreditam possuir a verdade integral, porque cada um defende o seu ponto de vista, geral ou particular, ou o seu interesse na pressuposição de que defende o interesse coletivo ou o bem público. No entanto, outra lei não existe tão eriçada de dificuldades. Todas as relações jurídicas vão, com a ruína do devedor comerciante, desaguar na sua falência. Conciliar os interesses divergentes ou em conflito, na árdua tarefa de medir os valores e reprimir a fraude, exige do legislador conhecimentos amplos do direito nacional e uma boa dose de experiência".1

A reforma da lei falimentar brasileira, através do Projeto de Lei n. 4.376/1993 da Câmara dos Deputados (por iniciativa do Sr. Ministro da Justiça, Dr. Maurício Corrêa), não foge à regra mencionada por Miranda Valverde e desde de 1993 tramita nas casas legislativas nacionais. A impontualidade, critério falimentar presente na legislação atual (art. 1o do Decreto-lei n. 7.661/1945), foi conservada na redação final do então Projeto n. 071/2003 (substitutivo ao Projeto de Lei da Câmara dos Deputados, n. 4.376/1993), aprovado pelo Senado Federal, como hipótese de decretação da falência, o que, ao nosso sentir, não parece ajustado à realidade contemporânea do direito, como se passa e se propõe a demonstrar.

II - Intróito

Nelson Abrão (1985), já nos idos de 1985, inicia o prestigioso estudo O Novo Direito Falimentar (Nova Disciplina Jurídica da Crise Econômica da Empresa), pontuando que a busca de soluções para a

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crise econômica das empresas é um esforço prioritário entre os hodiernos estudiosos e estudos de Direito. E inteira razão, a quase duas décadas atrás, assistia-lhe.

Ora, uma lei falimentar que tenha por escopo permitir a liquidação do patrimônio de uma entidade produtiva, cujo principal fundamento para decretação da quebra é o não pagamento de uma única obrigação líquida e certa no seu tempo, ou seja, impon-tualidade no cumprimento da obrigação (ou, atualmente, que legitime ação executiva), é uma lei que não atende aos princípios básicos da preservação da empresa e do fim social da empresa, sendo insuficiente para reger o momento atual da vida econômica que, como se sabe, não se firma na impon-tualidade (critério puramente jurídico e ob-jetivo), mas na crise generalizada, na insolvência econômica (e não jurídica).

O instituto da falência é por demais conhecido do ordenamento jurídico brasileiro, além de ser matéria que desperta grande interesse, senão embates, pelos ordenamentos jurídicos dos mais diversos países. Suficiente é, para se confirmar tal fato, citar que, neste ano de 2004, Portugal e Espanha promulgaram suas novas leis que disciplinam os processos concursais e de recuperação da empresa devedora.

Entretanto, mesmo sendo um instituto bastante conhecido e estudado, sabe-se que suas finalidades originárias não se mostram consentâneas e suficientes para atender às aspirações sociais dos dias atuais. Segundo anotação de Miranda Valverde (1940:62), em sua Exposição de Motivos de 1939 à lei falimentar por ele elaborada e que não chegou a ser publicada, os fins da falência seriam: (a) "amparar o devedor honesto, para que a empresa, sob a sua di-reção, continue, como unidade da economia nacional, aprestar serviços à coletivi-dade" e (b) "punir, severamente, o devedor desonesto, porque é elemento perturbador dessa mesma economia e que vai repercutir na ordem social, com a cessação das relações de trabalho". Vários juristas na-cionais, dentre eles, Nelson Abrão, já se debruçaram sobre essa finalidade liquida-tória, solutória e punitiva do instituto falimentar (que é reconhecida desde o seu nascedouro).2

Contudo, a crise do instituto falimentar tornou-se inequívoca e insuperável, vindo a autoridade de Tullio Ascarelli, em

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1962, a atribuir a razão da absoluta inadequação do instituto às aspirações sociais do pós-guerra, à natureza originariamente finalística e solutória da lei falimentar brasileira.3

Malgrado isso, o caráter liquidatário da falência se viu recentemente fortalecido quando o próprio Código Civil (Lei n. 10.406/2002), de forma pouco técnica ou, até mesmo, de forma equivocada, introduziu, em seu art. 1.044,4 a falência como hipótese de dissolução da sociedade empresária.

Certo é que, independentemente do sistema adotado ao longo da história (cessação de pagamento; impontualidade; insolvência, etc.), essa concepção do instituto da falência no direito brasileiro perdura desde o seu nascedouro, possivelmente por razões históricas, sempre tendentes à punição do comerciante desonesto (que outrora era feita com o próprio corpore e não com patrimônio) e a extinção da fraude, como destacado, brilhantemente, por Miranda Valverde, na obra "Como dificultar o império da fraude", publicada em 1929 (O Jornal). Pode-se afirmar que, à míngua de vozes destoantes, em nenhum momento houve por parte do legislador verdadeira preocupação com os aspectos sociais e, principalmente, econômicos da falência e da própria empresa. Basta lembrar que o Código Comercial de 1850, arts. 799 us-que 802, ao tratar das "Quebras", classificava a qualificação da falência em culposa, casual e fraudulenta.

Verificou-se, contudo, uma ruptura sem precedentes desta concepção liquida-tária da falência quando a própria empresa passou a ser vista como verdadeiro "agente econômico" útil à economia coletiva, deixando de ter importância exclusiva para os interesses dos credores para ganhar relevância social, econômica, e, inclusive, política, já que o seu grau de eficiência das empresas de um país determina o impulso das suas atividades produtivas e define a sua posição no quadro da economia mundial.

E a principal conquista desta nova noção da empresa como agente econômico, que também foi influenciada pela teoria social da propriedade privada (Abrão, 1985: 11), foi uma nova compreensão para a própria falência como meio de recuperação de empresa, submissa, por forçosa consequência, às questões sociais e econômicas, operando-se a desprivatização do instituto da seara jurídica. Por outras palavras, deve a falência deixar de ser um instituto puramente jurídico, vez que seus efeitos necessariamente irradiam-se pelos campos da sociedade, da vida pública e, principalmente, da economia.

Nesse contexto é que surgiu o interesse geral unido à salvação da empresa (inclusive com a dissociação da pessoa do empresário ou da sociedade empresária da própria empresa), passando-se a sustentar não mais a liquidação total da sociedade, mas, por outro lado, a valorização de sua atividade, com o fito de possibilitar e viabilizar a continuidade da empresa. Nascia, então, uma nova compreensão fulcrada em dois princípios: o da preservação e o da recuperação da empresa, frutos da superação do interesse público sobre o privado, fato que conduz à sobreposição, também, do caráter dualístico da falência (embate entre credor e devedor), a fim de torná-la um instrumento de interesse cole-tivo, no qual prevalece a sua função social. Desta forma, o interesse do credor passa a um segundo plano, sucedendo, em primeiro plano, a recuperação e viabilização da empresa, por consagração desta "unidade produtiva".

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Dentro desse novo conceito, não se pode admitir critérios de decretação de falência puramente jurídicos, como são a cessação de pagamento e a impontualida-de. Aliás, conforme Abrão (1985:31), a própria insolvência seria o último grau da "patologia" da crise da empresa e não essencialmente sua causa. Sem nem a insolvência seria um critério adequado à decretação da quebra, quiçá a impontualidade.

Por tudo isso é que se pode afirmar que a lei falimentar brasileira, que contempla o caráter finalístico e solutório originário, não mais atende a essas necessidades e aspirações sociais.

Visando adaptar-se à realidade concreta, desde 1993, como já salientado, tramita pelo Congresso Nacional um projeto de lei que cria a recuperação de empresas e reforma a vigente Lei de Falências como um todo. Nada obstante, tal projeto (atual-mente, Projeto de Lei n. 71/2003, substitutivo apresentado pelo Senado, através do Senador Ramez Tebet) conservou, como hipótese primária de decretação da falência, a impontualidade (art. 94, inciso I), criando, entretanto, solução mitigatória, consubstanciada na importância mínima do crédito inadimplido no tempo, no valor de 40 (quarenta) salários-mínimos.

E o que se pretende com o presente trabalho é exatamente mostrar, ainda que superficialmente e sem qualquer compromisso de esgotar o tema, que a impontualidade não serve mais como critério de decretação de falência, seja por não se ajustar às noções de crise econômica da empresa e insolvência, seja por não passar de mero instrumento de coação e cobrança (uso desvirtuado da falência), como bem ilustra Jorge Lobo (1996:8)5 ao tratar dos pressu-postos objetivos dos procedimentos con-cursais contemporâneos.

A relevância em discutir o tema reside no fato de que a utilização do pedido de quebra pela simples impontualidade no pagamento de um único débito tornou-se tão corriqueira que passou a comprometer a credibilidade, coercibilidade e, consequen-temente, a eficácia da falência, sendo certo que o projeto de lei ainda em trâmite, embora verdadeiramente compromissado com o interesse...

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