Critérios para a elaboração de uma política criminal: bem-estar geral e igualdade

AutorTiago Ivo Odon
Páginas109-125

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1 Política criminal e política pública

Toda norma jurídica1 nasce de uma decisão política. Eugenio Zaffaroni define política criminal como a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e penalmente e de escolher os caminhos para efetivar tal tutela.2 Já as políticas públicas, na definição de Maria das Graças Rua, compreendem o conjunto das decisões e das ações relativas à alocação imperativa de valores.3 Dado que o direito penal é um instrumento jurídico de ultima ratio,Page 110 ou seja, só deve ser usado pelo Estado quando os outros ramos do direito (direito civil, administrativo etc.) se mostrarem inadequados e ineficazes para reprimir e prevenir a ameaça ao bem jurídico em questão, a seleção de bens (como vida, patrimônio, saúde etc.) e a escolha do caminho de tutela estatal – criminalização da ofensa ao bem, a quantidade de pena etc. – traduzem alocação de valores.

Conforme Eugenio Lahera, parte fundamental da ação de governo refere-se ao desenho, à gestão e à avaliação das políticas públicas; ou seja, os governos são instrumentos para a realização de políticas públicas.4 Lahera aponta várias características de uma boa política pública, entre elas: critérios para a análise do custobenefício social; análise do benefício social marginal em relação a outras políticas; funcionalidade dos instrumentos etc. Algumas dessas questões têm ganhado um novo relevo na literatura jurídico-criminal, particularmente com a escola da Law and Economics, dos Estados Unidos da América.

A preocupação do presente artigo é com a decisão política a respeito da alocação de valores, isto é, com o desenho da política, mais especificamente, com o norte valorativo que guia a concepção da política na tomada de decisão. A filosofia político-econômica tem oferecido elementos importantes de análise de políticas públicas, os quais orientam a decisão política a respeito da alocação imperativa de valores. Lahera, por exemplo, identifica, na filosofia político-econômica, alguns critérios para se analisar uma política pública, e, nessa perspectiva, toma como referência Pareto, Amartya Sen e John Rawls. A descrição de Lahera é breve e, algumas vezes, imprecisa. Não obstante, nós a usaremos como ponto de partida, acrescentando-lhe outros critérios (como os de Kaldor-Hicks5, Hand6 e Coase7) para focar os dois que constituem o objeto de análise deste texto: o critério de bemestar do utilitarismo e o critério de igualdade de Rawls.

O objetivo deste artigo não é avaliar uma política pública, levantar questões sobre os custos de implementação, atores envolvidos etc. O objetivo é, com base em modelos que simplificam a realidade, realizar um exercício argumentativo sobrePage 111 os nortes valorativos a serem considerados para a tomada de uma decisão política, independentemente dos constrangimentos da aplicação da política em si. Assim, pretendemos focar, como já explicitado, dois critérios – os valores bem-estar geral e igualdade – e analisar a forma diferenciada a que ambos podem recorrer, quanto a orientar uma política criminal.

2 Critérios de filosofia político-econômica

Eficiência é um termo caro tanto para o direito quanto para a economia, e fundamental para a elaboração de uma política pública. Eficiência pode ter diferentes significados. “Eficiência alocativa”, por exemplo, refere-se à produção certa ou adequada de determinada quantidade de produto ou serviço. Relacionase com a lei básica de oferta e demanda e preocupa-se com a oscilação de preços no mercado. “Eficiência produtiva”, por outro lado, refere-se à produção de resultados ao menor custo possível.8 O termo pode ser usado com diferentes fins. Por exemplo, Pareto e Kaldor-Hicks não concordam entre si quanto ao que seria uma distribuição eficiente de bens.

Na mudança de uma situação de distribuição de bens, se as pessoas envolvidas melhoram de situação e ninguém piora, a realocação é considerada “Pareto superior”. Dada essa redistribuição, caso não possa haver uma realocação sem que ao menos uma pessoa seja prejudicada, tal situação é considerada “Pareto ótimo”. A eficiência tem outro sentido no modelo de Kaldor-Hicks. Para a distribuição ser eficiente, as pessoas que se beneficiam com a realocação de bens teriam de ser beneficiadas a ponto de poderem compensar os que foram prejudicados.

Poderíamos trocar o termo “eficiência” nesses modelos por “justiça”, para trazer a análise para o âmbito do direito. Assim, podemos ter critérios variados para avaliar a justiça de uma distribuição. Entre os critérios de filosofia políticoeconômica disponíveis, Lahera cita Pareto, Amartya Sen e John Rawls. Para otimizar a análise, acrescentaremos outros: os de Kaldor-Hicks, já antecipado, e os de Hand e Coase.

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Segundo o “ótimo de Pareto”, na rápida descrição de Lahera, o único critério de melhoria social dá-se quando uma situação alternativa aumenta a satisfação de alguns, sem diminuir a dos outros. Na verdade, essa seria uma situação “Pareto superior”, que, como visto, se dá quando alguns melhoram e ninguém piora de situação com a mudança provocada pela implementação da política pública. A situação “Pareto ótima” é aquela em que os recursos estão distribuídos de tal forma que não podem ser realocados sem que alguém seja prejudicado.9

A crítica que Lahera dirige a esse abordagem é que as comparações interpessoais de satisfação ou de utilidade não têm bases científicas. De fato, o utilitarismo supõe que os níveis de bem-estar individual sejam comparáveis, de modo a tornar possível a ordenação dos níveis de utilidade total, de acordo com as várias escolhas de programas sociais.10

O problema da aplicação de Pareto às políticas públicas é que ela pode levar a ações governamentais limitadas, uma vez que todos teriam de concordar com a política. Uma alternativa seria o equilíbrio de Kaldor-Hicks (conhecido, também, como “maximização de bem-estar”). Para que a situação seja eficiente nesse modelo, como antecipado, os indivíduos beneficiados com a realocação de recursos proporcionada pela política pública teriam de ser, suficientemente, beneficiados, a ponto de poderem compensar aqueles que foram prejudicados. Tal compensação é potencial, e não factual. Esse é um porém importante.11

Há outros critérios que, também, associam eficiência à maximização do bem-estar, como o Teorema de Coase. Em termos gerais, numa sociedade em que os direitos de propriedade estão bem definidos e os custos de transação são baixos, o bem deve terminar nas mãos de quem o valora mais. Isso significa que o Estado, por meio de políticas públicas e da legislação, deveria interferir o mínimo possível na sociedade, isto é, constranger o mínimo possível a livre negociação entre as partes, pois ele sempre acaba por aumentar os custos das transações sociais (com normas que distribuem ônus e bônus desigualmente, com limitações à iniciativaPage 113 privada, taxas, certidões, insegurança jurídica, burocracia administrativa etc.), o que significa, ao final, a geração de ineficiência na sociedade.

Outro critério é a Fórmula de Hand, que pode atuar para avaliar responsabilidades. Nessa perspectiva, a responsabilidade é uma função de três variáveis: a probabilidade do dano (P), a quantidade do dano a ocorrer (L) e o custo da prevenção (B). P x L (P multiplicado por L) é o dano esperado. Assim, pela Fórmula de Hand, se PL > B, o ofensor é responsável; se PL < B, o ofensor não é responsável. Significa dizer que a parte é culpada sempre que o dano pudesse ter sido evitado a um custo mais baixo.

Todos esses critérios citados, excluindo-se o de Pareto,12 podem ser incluídos no critério geral de maximização de bem-estar, ou, simplesmente, critério de bem-estar geral. É o critério clássico do utilitarismo. Esses critérios não estão preocupados com as pessoas consideradas individualmente, mas com uma situação final julgada justa ou eficiente. Ou seja, foca a maximização do bem-estar social total. A sociedade ganha quando um bem está nas mãos de quem o valora mais, a sociedade ganha quando as pessoas podem evitar danos, se a prevenção custa menos que a reparação, não importando o bem-estar individual das pessoas envolvidas em cada caso concreto.

Lahera faz referência, em segundo lugar, a Amartya Sen, que não vê, no bemestar, a tradução da soma das utilidades agregadas. mas, sim, a representação das liberdades de que o indivíduo, efetivamente, dispõe, por meio do uso dos direitos e das oportunidades ao seu alcance. A obtenção da verdadeira liberdade dependeria, portanto, de uma combinação entre direitos e capacidade de gozo.13 Ou seja, não se deve levar em consideração apenas a mera distribuição de bens, conforme os modelos de Pareto e Kaldor-Hicks, por exemplo, mas, também, a capacidade de as pessoas usufruírem desses bens.

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Em ataque a John Rawls, que usa um modelo semelhante ao de Pareto, Sen afirma que não bastaria uma simples dotação de bens primários (“direitos, liberdades e oportunidades, assim como renda e riqueza”14), que seriam garantidos para as pessoas exercerem seu papel no sistema político. Para ele, as capacidades de gozo não são garantidas se não houver uma relação entre tais bens e as pessoas, dadas as diferenças interpessoais. A preocupação de Sen é de ordem prática: do que adianta garantir determinados direitos a certas pessoas – por meio de uma política pública que gerará uma redistribuição justa, seja aos olhos de Pareto ou de Kaldor-Hicks – se elas não possuem condições econômicas de exercitá-los?15

Por fim, Lahera cita Rawls, cuja teoria prevê uma dotação de bens primários para que as pessoas satisfaçam seus planos de uma vida racional16. Para Rawls, a justiça de um esquema social depende...

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