Critérios distintivos do intérprete civil-constitucional

AutorEduardo Nunes de Souza
Páginas115-145
CRITÉRIOS DISTINTIVOS DO INTÉRPRETE
CIVIL-CONSTITUCIONAL1
Eduardo Nunes de Souza
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor Adjunto de Direito Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado
da Faculdade de Direito da UERJ.
Sumário: 1. Introdução: como identicar uma proposta hermenêutica (efetivamente) liada
ao direito civil-constitucional? 2. A postura do intérprete civil-constitucional diante da norma
infraconstitucional. 3. A relevância da subsunção na fundamentação da decisão civil-consti-
tucional. 4. Complexidade, ponderação e merecimento de tutela: a legalidade constitucional.
5. Síntese conclusiva. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO: COMO IDENTIFICAR UMA PROPOSTA HERMENÊUTICA
(EFETIVAMENTE) FILIADA AO DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL?
A metodologia do direito civil-constitucional, hoje amplamente difundida no
cenário jurídico brasileiro, já teve seus pressupostos fundamentais esclarecidos e de-
senvolvidos pela mais autorizada doutrina. O presente estudo, composto especialmente
para integrar a obra coletiva Direito Civil na Legalidade Constitucional, não deve, assim,
ser compreendido como uma tentativa de sumarizar os diversos pilares essenciais dessa
escola hermenêutica, as muitas fontes que a inf‌luenciaram ou os incontáveis desdo-
bramentos decorrentes de sua aplicação. Com efeito, tantos estudos seminais sobre
o tema já foram realizados e com tamanha minúcia, que um novo trabalho dedicado
a tratar panoramicamente dessa corrente de pensamento pouco teria a acrescentar.
O maior campo atual de desenvolvimento dogmático do direito civil-constitucional,
de fato, não parece estar mais no estabelecimento teórico dos seus pressupostos, mas
sim no enfrentamento das dif‌iculdades práticas de sua implementação. Assim teste-
munham trabalhos recentes de alguns dos mais importantes autores f‌iliados à escola
civil-constitucional,2 que concentram sua atenção no problema da fundamentação das
decisões judiciais e de sua legitimação, por exemplo, ou que buscam elucidar equívocos
ou desvios de perspectiva comuns ao jurista na interpretação civil-constitucional de
temas específ‌icos.
1. O autor agradece ao pesquisador de iniciação científ‌ica Matheus Mendes de Moura (PIBIC-CNPq) pelo auxílio
com pesquisas e pela cuidadosa revisão dos originais.
2. Cf., dentre muitos outros, BODIN DE MORAES, Maria Celina. Do juiz boca-da-lei à lei segundo a boca-do-juiz:
notas sobre a aplicação-interpretação do direito no início do século XXI. Revista de Direito Privado, v. 56. São
Paulo: Ed. RT, out.-dez./2013; KONDER, Carlos Nelson. Princípios contratuais e exigência de fundamentação
das decisões: boa-fé e função social do contrato à luz do CPC/2015. Opinião Jurídica, a. 14, n. 19. Fortaleza: jul.-
dez./2016; SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson. Uma agenda para o direito civil-constitucional.
Revista Brasileira de Direito Civil, v. 10. Belo Horizonte: Fórum, out.-dez./2016.
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EDUARDO NUNES DE SOUZA
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Tampouco se buscou, com a presente análise, tecer uma defesa em face das críticas
ainda hoje dirigidas ao direito civil-constitucional, em sua maior parte fundadas em
uma suposta perda de segurança jurídica por essa metodologia,3 ou, ainda, baseadas em
um lamento generalizado pelo que se imagina ser uma intervenção indevida do direito
público sobre o direito privado, com o aparente sacrifício à autonomia dogmática deste
ou, em linhas mais gerais, à autonomia privada e às liberdades individuais. Embora rela-
tivamente frequentes, eis que fomentadas pelo atual cenário político brasileiro e mundial
(cada vez mais recalcitrante a pautas de fundamental importância para a tutela de mino-
rias e para a efetivação da dignidade humana, e saudoso de um modelo econômico por
vezes designado, de maneira simplista, como “liberal”),4 tais críticas pouco contribuem
para o aperfeiçoamento do direito civil-constitucional em face dos seus mais relevantes
desaf‌ios, notadamente o de desenvolver subsídios verdadeiramente úteis ao intérprete
na solução de casos concretos.
De fato, postulando a relevância normativa dos elementos fáticos e sustentando que o
ordenamento jurídico apenas se completa à luz do caso concreto, enfrentam os autores do
direito civil-constitucional a dif‌iculdade de propor, quase contraditoriamente, no âmbito
teórico (portanto, em abstrato), critérios hermenêuticos úteis para uma interpretação-
-aplicação do Direito metodologicamente adequada – sem, por outro lado, estimularem o
intérprete a incorrer no mesmo problema observado na subsunção crua da norma positiva
(a desconsideração do potencial hermenêutico das idiossincrasias de cada caso concreto).
Enfrentam, ainda, a tendência, cada vez mais presente no direito brasileiro, da aplicação,
como se normas abstratas fossem, de enunciados sumulares e teses extraídos da solução
de casos concretos pela jurisprudência. Como desenvolver uma cultura hermenêutica que
ancore o intérprete ao caso concreto e, ao mesmo tempo, garanta uma decisão sistemati-
camente adequada e democraticamente legítima, se todos os referenciais com que pode
ele contar para fundamentar seu julgamento (inclusive a própria produção doutrinária
do direito civil-constitucional) se produzem, inevitavelmente, a priori? E como, por outro
lado, garantir que a individuação da norma à luz do caso concreto preserve sua aderência
ao sistema jurídico, sem recair em mera tópica descompromissada com a norma?
O presente estudo, furtando-se de abordar as críticas corriqueiras e buscando, por
outro lado, oferecer subsídios possivelmente úteis para os verdadeiros desaf‌ios atuais da
3. Alegação que chega a ser curiosa, eis que a análise funcional do direito privado e a crescente abertura desse
setor aos princípios e valores do ordenamento sempre foi pautada pela promoção da segurança jurídica. Veja-
se, ilustrativamente, a lição de Stefano RODOTÀ a respeito da técnica das cláusulas gerais: segundo o autor, ao
mesmo tempo que representa uma abertura de conteúdo da norma, a cláusula geral delimita o espaço de atuação
do intérprete e “conf‌irma, assim, o caráter residual da equidade no nosso ordenamento”, de modo a excluir
“intervenções puramente discricionárias do juiz” e contestando-se “o uso que historicamente se tem feito da
equidade em nosso sistema, considerando-a como puro trâmite dos valores do mercado” (Il tempo delle clausole
generali. Rivista Critica di Diritto Privato. Napoli: Jovene, 1987, p. 733. Tradução livre).
4. Ref‌lexo recente dessa tendência pode ser observado, por exemplo, na recente reforma promovida no Código
Civil pela assim denominada “Lei da Liberdade Econômica”, movida por um discurso de defesa da autonomia
privada em face de supostas intervenções estatais indevidas (com particular destaque para a revisão judicial dos
contratos). A reforma parece ter ignorado que a implementação da solidariedade no direito contratual como meio
de reduzir iniquidades e proteger contratantes vulneráveis tem sido há muito compreendida como pressuposto
para a promoção de uma liberdade contratual efetiva – no que a doutrina civil-constitucional já denominou, em
feliz expressão, liberdade substancial (sobre este último aspecto, cf. FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos,
transformações e f‌ins. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 49).
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