Critérios de interpretação das cláusulas compromissórias: usos e costumes, boa-fé e circunstâncias

AutorCarlos Nelson Konder e Michel Glatt
Páginas173-210
Critérios de interpretação das
cláusulas compromissórias: usos e
costumes, boa-fé e circunstâncias
Carlos Nelson Konder
Michel Glatt
Sumário: Introdução; 1. A interpretação da cláusula compromis-
sória antes do CC/2002; 2. A interpretação da cláusula compro-
missória durante o CC/2002; 3. A interpretação da cláusula
compromissória após 20 anos de edição do CC/2002; 4. Análise
crítica: perspectivas para a interpretação da cláusula compromis-
sória; 5. Conclusão.
Introdução
Cada vez mais a arbitragem se destaca como método de so-
lução de conflitos no Brasil e afora, especialmente em função
das vantagens que propicia aos agentes. O crescente prestígio do
instituto, apesar de assegurar relevantes conquistas para a reso-
lução de controvérsias, fomenta questões acerca de seu alcance.
No cerne das discussões, encontra-se a cláusula compromis-
sória, convenção mediante a qual determinados contratantes ele-
gem a arbitragem como meio para dirimir eventuais conflitos que
surjam da relação jurídica entre eles estabelecida. Nesse sentido,
relevantes debates acerca da possibilidade de submissão de deter-
minada disputa ao procedimento arbitral perpassam justamente
por uma questão de intepretação desse pacto arbitral que, dotado
de consideráveis peculiaridades, é o instrumento que outorga e,
ao mesmo tempo, limita a competência dos árbitros para o julga-
mento das controvérsias que lhes são submetidas.
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Nesse cenário, o presente estudo buscará apontar as diretri-
zes utilizadas pela doutrina e jurisprudência para a hermenêuti-
ca do pacto arbitral, contemplando sua análise desde o período
anterior à promulgação do Código Civil de 2002 até a contem-
poraneidade, tomando por premissa a relatividade e historicida-
de que marcam a totalidade dos institutos jurídicos.
Dessa forma, na medida em que a cláusula compromissória
consiste em negócio jurídico, o exame será centralizado nos cri-
térios interpretativos negociais indicados pelo ordenamento ju-
rídico brasileiro nos diversos períodos, considerando o significa-
do e relevância que, em cada momento, se atribui a eles. Nessa
esteira, abordar-se-á, em especial, a boa-fé objetiva, os usos e
costumes e as circunstâncias do negócio, que, com diversas in-
tensidades, sempre foram apontados dentre os parâmetros para
análise do negócio jurídico.
1. A interpretação da cláusula compromissória antes do
CC/2002
O desenvolvimento da arbitragem no Brasil, a despeito de
existir previsão normativa desde a Constituição imperial de
1824 e de o Código Comercial de 1850 já estipular a arbitragem
obrigatória, é considerado tardio em comparação com outros or-
denamentos.1 Por mais de um século, essas previsões não foram
suficientes para o desenvolvimento da prática, em virtude da in-
terpretação que prevaleceu, especialmente a partir da promul-
gação do Código Civil de 1916.
O CC/1916 se limitava a regular o compromisso arbitral,
isto é, a convenção arbitral para a solução de litígio já instaurado.
Com relação à cláusula compromissória – o acordo para submis-
são de eventuais futuros litígios à arbitragem – predominava a
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1 TIBURCIO, Carmen. Cláusula compromissória em contrato internacio-
nal: interpretação, validade, alcance objetivo e subjetivo. Revista de Proces-
so, n. 241. São Paulo, mar. 2015, p. 521-566.
interpretação de que ela não poderia afastar o acesso à jurisdição
e que, cominando obrigação de fazer, seu descumprimento gera-
ria somente a obrigação de indenizar eventuais perdas e danos,
de difícil quantificação na ausência de cláusula penal.2 A cláusu-
la compromissória, portanto, era encarada como um pré-contra-
to não vinculante.3
Além da impossibilidade de execução específica da cláusula
compromissória, exigia-se que a sentença arbitral fosse homolo-
gada pelo Judiciário para ser exequível e, se estrangeira, deveria
ser homologada pela justiça de origem antes de ser submetida ao
STF.4 A exigência de homologação judicial acabava por retirar os
principais benefícios que a arbitragem traria às partes, tornando-
a pública, custosa e demorada.5
Dessa forma, o entendimento de que o ajuste para submeter
futuros litígios à arbitragem não seria eficaz se não houvesse
novo consenso uma vez instaurado o litígio – situação pouco pro-
pícia para acordos – e que, ocorrida a arbitragem, a decisão ainda
teria que ser submetida ao Judiciário para ser exequível, cons-
truiu um cenário em que “a arbitragem não foi mais do que letra
morta no direito positivo brasileiro”.6
Esse cenário, portanto, pode ser tributado a uma perspectiva
interpretativa restritiva frente aos efeitos dos negócios jurídicos
arbitrais: ao compromisso exigia-se homologação judicial e à
cláusula compromissória cominava-se, face ao seu descumpri-
mento, somente efeito indenizatório. A desconfiança quanto ao
procedimento arbitral associava-se à sua interpretação restriti-
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2 BRAGHETTA, Adriana. Cláusula compromissória – auto-suficiência da
cláusula cheia. Revista dos Tribunais, vol. 800, p. 137-144, jun./2002.
3 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à
Lei n. 9.307/96, 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 100.
4 TIBURCIO, Carmen. Cláusula compromissória em contrato internacio-
nal, cit, p. 521-566.
5 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo, cit., p. 5.
6 THEODORO JÚNIOR, Humberto. A arbitragem como meio de solu-
ção de controvérsias. Revista Forense, v. 353. Rio de Janeiro: jan./fev. 2001,
p. 111.

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