Crítica do protagonismo do poder judiciário. o ativismo judicial entre reconhecimento e redistribuição

AutorAndré Leonardo Copetti Santos - Doglas César Lucas
CargoPós-Doutor pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e pós-doutorando pela Universidade de Santiago do Chile (USACH). Possui mestrado (1999) e Doutorado (2004) em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e graduação em Direito pela Universidade de Cruz Alta (1988) - Pós-Doutor em Direito pela Università Degli Studi di Roma...
Páginas197-230

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Considerações iniciais

A atuação jurisdicional, em suas distintas vicissitudes, tem se tornado um objeto de reflexão cada vez mais caro a algumas ciências que se ocupam do fenômeno jurídico, em especial às abordagens da sociologia política e jurídica, da ciência política e da filosofia política e do direito. O principal fator determinante da abertura dessa senda investigativa é, como destaca Boaventura de Sousa Santos, o recente e sempre crescente protagonismo social e político dos juízes (2009, p. 81), situação praticamente inexistente nos períodos pré-modernos em função da quase total submissão da iurisdictio à gubernaculum. Essa ampliação do protagonismo judicial e as preocupações teóricas disso decorrentes são ainda mais intensas e reclamam um cuidado investigativo e um debate público muito maiores em países como o Brasil, onde uma concentrada e densa positivação de direitos fundamentais de diferentes características e funcionalidades ocorrida na Constituição Federal de 1988, tem gerado uma avalanche de demandas sem precedentes que atingiu todos os poderes estatais, seja por políticas públicas, seja por legislações ou, no âmbito do Judiciário, por decisões judiciais.

O tema dos limites e possibilidades da atuação do Poder Judiciário frente aos outros poderes não é novo. Montesquieu, em seu “Espírito das Leis”, Hamilton, Madisson e Jay, nos “The Federalist Papers”, ou Tocqueville na “Democracia na América” já tratavam desse assunto há mais de duzentos anos. Entretanto, nos últimos tempos, a matéria foi renovada. No Brasil, julgamentos históricos com alta intensidade protagonística têm sido realizados pelo Supremo Tribunal Federal, com um nível de ruptura ética como jamais havia ocorrido. A título exemplificativo, no mesmo passo em que se ampliaram os espaços sociais, políticos e econômicos de casais homossexuais com a decisão na ADI 4.277, restringiram-se enormemente direitos de réus em processos criminais, com a viabilização da prisão após decisão condenatória em segundo grau em decorrência do acórdão prolatado no HC 126.292/2016.

A teorização realizada nos clássicos antes apontados, bem contextualizada a situações temporal e espacialmente específicas à França e aos Estados Unidos oitocentistas, não pode ser indiscriminadamente aplicada, como uma espécie de teoria política e jurídica geral sobre a separação dos poderes, a qualquer discussão que se pretenda estabelecer para balizar a atuação de Poderes Judiciários de distintos países na contemporaneidade. Esse cuidado há de ser ainda mais refinado para os arranjos institucionais de países onde aspectos totalmente peculiares da realidade

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social, econômica, política e jurídica exigem uma reflexão mais adequada, seja em termos estruturais, seja em termos funcionais e de conteúdo para um balizamento dos marcos de atuação do Poder Judiciário em frágeis democracias, tanto sob o aspecto formal quanto substancial. É preciso ter presente que os modelos de atuação judicial nos países centrais não se adequam às trajetórias históricas dos países periféricos e semiperiféricos. Nesses, o nível de desenvolvimento econômico e social afeta o desempenho dos juízes em dois sentidos fundamentais: por um lado, condicionando o tipo e o grau de litígio social e, por consequência, o de litígio judicial; por outro, ainda que não se possa estabelecer uma correlação exata entre desenvolvimento econômico e político, os sistemas políticos de países menos desenvolvidos ou de desenvolvimento intermediário são em geral mais instáveis, com períodos mais ou menos longos de ditadura, alternados com períodos mais ou menos curtos de democracia de baixa intensidade, fato que afeta sensivelmente a atuação judicial (SANTOS, 2009, p. 102).

Com o acontecimento dos Estados constitucionais modernos, os Tribunais tornam-se órgãos de soberania, compondo um novo arranjo institucional republicano, onde a separação e a harmonia dos poderes joga um importante papel. Entretanto, em que pese a existência dessa estrutura de poder bicentenária, praticamente na totalidade dos países ocidentais que adotam modelos constitucionais de organização política, é preciso considerar que uma série de particularidades e necessidades afeta as características estruturais e funcionais do concerto institucional dos poderes em cada país, especialmente em função do constante aumento do protagonismo do Poder Judiciário ao longo da modernidade.

A compreensão do significado sociopolítico da atuação dos tribunais tem ultrapassado em muito algumas das explicações reducionistas que as vinculam aos modelos explicativos do Estado baseadas na evolução do fenômeno europeu, notadamente as que relacionam a atuação judicial com as diferentes fases de positivação dos direitos humanos em cartas constitucionais. Não que não haja uma influência dos diferentes tipos de direitos fundamentais positivados historicamente sobre os parâmetros da atuação judicial. Sim, há. Entretanto, o que é preciso deixar claro é que ainda que a evolução da postura dos tribunais de diferentes países guarde certos traços em comum, não só porque, como afirma Santos, os estados nacionais partilham o mesmo sistema interestatal, mas também porque as transformações políticas são em grande parte condicionadas pelo desenvolvimento econômico e – acrescentamos –, boa parte dos países adota os diferentes núcleos de direitos humanos acordados internacionalmente como base de seus julgamentos, é preciso considerar que essas mesmas razões indicam que a evolução varia significativamente de Estado para Estado, consoante a posição no sistema interestatal e da sociedade nacional a que respeita no sistema da economia-mundo (SANTOS, 2009).

Santos (2009), tomando em conta a complexidade de fatores que podem afetar a atuação do Poder Judiciário, subdivide a periodicidade da postura sociopolítica dos juízes considerando elementos que ultrapassam em muito a cultura jurídica dominante (tradição europeia continental, anglo-saxônica etc.), para chegar a dois fluxos históricos de desenvolvimento do comportamento dos sistemas

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judiciais: a evolução nos países centrais e a evolução em países periféricos e semiperiféricos (como o Brasil, dentre outros).

Assim, pensar os limites e possibilidades do protagonismo judicial no Brasil, tanto no que toca à judicialização da política quanto em relação a possíveis ativismos – e é essa última questão a que mais celeuma e preocupação tem causado –, exige, em primeiro lugar, que nos afastemos, cautelosamente, da periodização da postura sociopolítica dos tribunais construída em termos de evolução dos processos de positivação de direitos humanos no constitucionalismo dos países centrais, dividida entre o período liberal, o do Estado providência e o do Estado democrático pós-Segunda Guerra, pois essa macroabordagem está vinculada a fenômenos históricos específicos e próprios da Europa, decorrentes de lutas sociais que determinaram as conquistas políticas posteriormente positivadas, paulatina e sequencialmente, sob a forma jurídico-constitucional de direitos fundamentais. Em nosso caso, não só não tivemos esse processo político-jurídico paulatino, sucessivo e sequencial, mas, por outro lado, tivemos uma positivação abrupta, num só momento – a Constituição Federal de 1988 – de distintos tipos de direitos fundamentais, situação que somada a desequilíbrios institucionais atribuíveis ao uso indevido, excessivo e indiscriminado de medidas provisórias pelo Poder Executivo, gerou um colapso para o Poder Legislativo no seu desiderato de atender, no plano infraconstitucional, todas as exigências e indicações de normatização constantes na Carta Constitucional.

Essa situação de impotência do Poder Legislativo para atender a todas as demandas de legislação que lhe foram submetidas pós-88, levou a uma maior procura pelo Poder Judiciário, que passou a ser provocado a manifestar-se sobre uma série de questões com forte apelo político, e que tradicionalmente eram tratadas pelo Legislativo, mas que, desde então, não são e continuam a não ser resolvidas no plano parlamentar. Essa inflação de demandas por normatização decorre, sem dúvida alguma, não só do leque de novos direitos quantitativa e qualitativamente diferenciados em relação aos nossos anteriores catálogos constitucionais, os quais colocaram no jogo político e jurídico novas exigências e indicações constitucionais de regulação, como também não só dos desequilíbrios institucionais em relação à separação e harmonia dos poderes, mas também resulta da composição altamente conservadora do Parlamento – veja-se o caso da bancada evangélica que hoje conta com 87 parlamentares (85 deputados e 2 senadores) –, ou ruralista, composta por 207 deputados, ou, ainda, da bancada da bala, com 35 deputados (AGÊNCIA DE JORNALISMO INVESTIGATIVO, 2016).3Essa situação política merece toda atenção, especialmente quando se tem em mente a questão dos limites e possibilidades do ativismo judicial num contexto normativo constitucional que não

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pode ser considerado conservador. Muito pelo contrário. Em toda nossa história constitucional é o texto mais progressista, mais tolerante, mais democrático.

Em suma, o que queremos acentuar é que uma complexa rede de causalidades determinou uma modulação na atuação dos poderes públicos em suas clássicas funções, restando à jurisdição a solução de uma quantidade considerável de conflitos, que, no entendimento dos que se posicionam contra o ativismo judicial, caberia ao...

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