Crítica à teoria de amorim filho à luz do processo no estado constitucional. Relação entre direito e processo

AutorFrancisco Rossal de Araújo - Rodrigo Coimbra
Páginas44-57

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Passar-se-á a apresentar algumas críticas à teoria de Amorim Filho à luz do direito material e do processo no Estado Constitucional. Vale dizer que seu ensaio seminal é de 1961 e, portanto, reflete a época em que foi formulado.

Amorim Filho125 sustenta que a prescrição extingue a ação (no sentido processual), conforme se depreende de várias passagens ao longo de sua obra, tendo como um dos pilares de sua teoria a “classificação segundo a carga de eficácia das ações”, de Pontes de Miranda. A passagem abaixo exemplifica que Amorim Filho se refere à ação em sentido processual:

Assim, com a prescrição, limita-se o prazo para exercício da ação. Esgotado o prazo, extingue-se a ação, mas sòmente a ação, pois o direito correspondente continua a subsistir, se bem que em estado latente, podendo até, em alguns casos, voltar a atuar. A sobrevivência do direito violado (em estado latente) por si só não causa intranquilidade social. O que causa tal intranquilidade é a ação, isto é, a possibilidade de ser ela proposta a qualquer momento. Dêste modo, não se faz necessário extinguir o direito para fazer cessar a intranquilidade — basta extinguir a ação. É por isso que se diz comumente, e com procedência, que a prescrição extingue a ação e não o direito. (Grifou-se126)

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A concepção de prescrição de Amorim Filho confunde os planos de direito material e de direito processual, a partir do acolhimento, no Brasil, da tese de Windscheid127 de que a prescrição extingue a pretensão de direito material, que é o significado da actio romana, de acordo com o estudo romanista realizado por Windscheid — um dos redatores mais influentes do BGB.128

Nesse sentido, o Código Civil de 2002129 (art. 189), objetivando atualizar-se com linguagem mais adequada tecnicamente no que concerne ao objeto da prescrição, em face dos percalços em torno do significado da expressão actio, passou a estabelecer que a prescrição provoca a perda da pretensão de direito material130.

A redação atual da CLT (art. 11), dada pela Lei n. 13.467/17, avançou no que tange à teoria geral e a adequação da terminologia ao dispor que prescreve a “pretensão”.

Assim, do ponto de vista da adequada compreensão do binômio direito e processo, a concepção de prescrição de Amorim Filho confunde os planos de direito material e de direito processual, pois a prescrição pertence ao plano de direito material, e a ação processual está no plano de direito processual. Ademais, a ação em sentido processual131 não prescreve. O que prescreve é a pretensão de direito material.

Outro apontamento que se faz aos critérios distintivos de prescrição e decadência formulados por Amorim Filho, no seu ensaio de 1961, é de que foram concebidos para tutelar tão somente direitos individuais, partindo de uma classificação de direitos subjetivos, que, historicamente, tem em mente apenas os direitos individuais.

O Direito, nessa época, estava preocupado somente em tutelar direitos subjetivos de indivíduos isolados, “sem preocupação com a vida geral em todas as suas formas”.132 Nessa época, mal se começava a falar, na Itália, em tutela de direitos ou interesses transindividuais, razão pela qual é mais que compreensível que essa teoria não tenha sido pensada para os chamados novos direitos, refletindo uma época na qual, notadamente, os direitos difusos eram considerados matéria pertinente à Administração Pública e, quando muito, ao Direito Administrativo.

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Nesse sentido, Mitidiero refere que o individualismo “é patente” no Código de Processo Civil brasileiro, não tendo compromisso com questões de cunho transindividuais, que o espírito dos oitocentos não acudia.133 Conquanto o chamado Código Buzaid seja de 1973, teve por base a cultura europeia do século XIX e o Código Civil brasileiro de 1916, centrados no binômio indivíduo-patrimônio, sendo que, debaixo da patrimonialidade, pulsa a proteção da liberdade individual134, reforçando o individualismo como a característica principal do ordenamento.

Não se cogitava sobre tutela de direitos difusos. Direitos ou interesses difusos eram matéria atinente à administração pública — direito público135, quando era direito —, e o Judiciário apreciava direitos ou interesses difusos apenas em matéria penal e, primordialmente, para resguardar os direitos do acusado.136

Os direitos difusos têm como uma de suas características distintivas a indeterminação dos titulares137, visto que pertencem a uma pluralidade indeterminada ou indeterminável de sujeitos que, potencialmente, podem incluir todos os participantes da comunidade, por isso, chamados de substancialmente anônimos.138

A partir dessas noções, não é adequado tratar os direitos ou interesses difusos com a mesma proteção jurídica formulada no modelo individualista do Estado Liberal.139

Pertencendo a prescrição e a decadência ao plano de direito material, mas sendo declaradas no processo e com efeitos significativos de extinção do processo com julgamento de mérito, impera a necessidade de adequada compreensão das relações entre direito e processo.

As relações entre direito e processo vêm constituindo, há mais de dois séculos, objeto de constantes debates, evidenciados pelas diversas teorias a respeito da ação.140

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Trata-se de um dos temas “mais sugestivos e mais difíceis” do direito processual no dizer de Buzaid.141 As relações entre direito e processo são uma vecchia formula, que combina i due fondamenti a partir dos quais se pode construir uma teoria do Processo Civil, conforme Carnelutti142, salientando que o processo serve ao direito, mas também é servido pelo direito143 e, a partir disso, a relação entre direito e processo é dupla e recíproca.144

Nesse sentido, Tesheiner fala que há uma relação de “retroalimentação” entre o processo e o direito material, pois cada um é instrumento do outro e servem ambos à regulação da vida social, constituindo, juntos, o que se chama de Direito. Em semelhante visão, Zaneti145 destaca que o binômio direito e processo deve ser visto como uma “relação circular” em uma perspectiva de interdependência e complementariedade.

Não obstante a quase146 unanimidade da doutrina quanto à existência de dois planos distintos, autônomos e relacionados, o mesmo não se pode dizer a respeito das relações que se dão entre eles. Dito de outro modo, a doutrina processual chegou a um consenso de que pode existir ação e jurisdição, independentemente da existência ou inexistência de direito subjetivo material147, havendo, portanto, clara distinção e autonomia entre os planos de direito material e de direito processual, todavia o nexo que os vincula segue sendo objeto de teorias e debates entre os cultores do direito processual.

Não se pode deixar de abordar, ainda que brevemente, a clássica polêmica em torno da “ação de direito material” (a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo), envolvendo Ovídio Baptista148 (seguindo Pontes de Miranda149) — que a admite — e Álvaro de Oliveira — que não a nega, mas a reputa inadequada para servir como ponte

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entre o direito e o processo150 — em face das importantes reflexões que o debate provoca acerca das relações entre direito material e direito processual.

No plano de direito material, Ovídio Baptista151, além do direito subjetivo e da pretensão, entende importante a categoria da “ação de direito material”, na linha de Pontes de Miranda152, para quem a ação (de direito material) se exerce, principalmente, por meio da “ação” (em sentido processual), sustentando que a coerção jurídica nem sempre é judicial.

Comparando-a com a pretensão (material), o autor diz que “o exigir, que é o conteúdo da pretensão, não prescinde do agir voluntário do obrigado, ao passo que ação de direito material é o agir do titular do direito para a realização, independentemente da vontade daquele”. Seria o agir, não mais tão somente exigir o cumprimento mediante ato voluntário do devedor. Esse agir material raramente é facultado sem que se imponha ao titular a necessidade de veiculá-lo por meio da ação processual, em decorrência do monopólio da jurisdição pelo Estado. A pretensão, conforme a lição de Araken de Assis, constitui-se figura intercalar entre o direito subjetivo e a ação (de direito material).153

Defende Ovídio Baptista154 que o juiz, no processo, exerce duas ordens de atividade: a primeira, de certificação do direito, por meio da qual investiga se as afirmações feitas pelo autor coincidem com a realidade e o direito material afirmado; a segunda, se afirmativa a

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primeira, desenvolvendo a ação de direito material que o autor não pôde realizar privadamente, por ser vedada a tutela privada, em regra. O exercício privado da ação de direito material constitui crime.

Fazendo um contraponto, Álvaro de Oliveira155 rejeita a concepção de que, na ação processual, está embutida a ação de direito material (“a ‘ação’ exerce-se junto com a ação”, de acordo com Pontes de Miranda156), sustentando que o plano de direito material em estado puro é a autotutela — vedada pelo nosso ordenamento jurídico — e a declaração de direito, pelo próprio interessado, não passaria de flatus vocis (pura nomenclatura), por não haver pretensão atendível independentemente do processo nas ações constitutivas necessárias e, ainda, porque condenação constitui fenômeno tipicamente processual. O autor entende que os conflitos se resolvem no processo e com aplicação de formas de tutelas processuais (não retiradas do direito material): “ora, se não é possível afirmar a existência do direito antes do contraditório, muito menos se poderá admitir a ‘ação material’ já no início da demanda. Sua existência só poderá ser averiguada no final do processo, com o trânsito em julgado da sentença, quando então se confundirá com a eficácia da própria sentença”. Segundo o autor, para os defensores da “ação de direito material”, a sentença “haveria de ser sempre favorável”.157

De acordo com Tesheiner158, os casos remanescentes de autotutela...

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