Justiça no Século XXI: crise da justiça? juízes para o mercado?

AutorLetícia Mara Pinto Ferreira - Rômulo Soares Valentini
Ocupação do AutorMestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e Advogada. - Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais e Assistente de juiz Substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região.
Páginas209-219

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1. Introdução

Morosidade. Burocracia. Estrutura arcaica. "Ganha, mas não leva". Crise do Judiciário. Necessidade de promover o acesso à Justiça. Busca da efetiva prestação jurisdicional. Celeridade. Eficiência. Conselho Nacional de Justiça. Meta 02. Meta 05. Repercussão Geral. Súmulas Vinculantes.

Essas palavras e expressões tão repetidas nos diversos diálogos jurídicos - sejam estes acadêmicos, profissionais, populares ou "de boteco" - quando encadeadas nessa forma de raciocínio lógico, parecem apontar uma linha de ação para a superação dos problemas, análoga a um tratamento médico: percebem-se os sintomas, descobre-se a doença, estabelece-se um diagnóstico, propõe-se um tratamento e aplicam-se os remédios.

Um processo lógico, simples, racional e coerente que, aparentemente, soluciona os problemas. Mas, como em toda solução rápida dada para problemas complexos, é inevitável que, em uma análise mais aprofundada, logo surjam dúvidas: será que a solução é realmente simples ou foi apenas simplificada? E se foi simplificada, será que foi ignorado algo que pode ser extremamente relevante para o diagnóstico, a ponto de fazer a cura se revelar pior do que a doença?

Analisando-se o esquema proposto no início do texto, parece haver consenso de que buscar maior celeridade e eficiência organizacional são metas plausíveis de serem perseguidas para promover o acesso à Justiça e garantir a efetividade das decisões judiciais1. No entanto, não se pode ignorar que existem outros elementos e valores que também são necessários para a promoção da Justiça.

A indagação, portanto, não consiste em questionar a necessidade de celeridade e eficiência nos processos judiciais, mas sim de que modo esses valores serão efetivados. Para responder essa indagação, primeiramente será analisado um problema inerente ao Direito: o porquê do desvirtuamento de valores constitucionais e da pluralidade de interpretações das normas jurídicas e como esses fatores podem intervir na busca por celeridade e eficiência. A seguir, será analisada a pressão mercadológica e sua influência sobre a sociedade de consumo e sobre a formação do indivíduo na pós-modernidade.

Posteriormente, o estudo irá analisar a formação e a cultura jurídica do magistrado contemporâneo, evidenciando como as estruturas existentes na socie-dade brasileira e as pressões mercadológicas advindas da pós-modernidade culminam para a criação de um perfil complexo dos juízes do início do século XXI.

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Por fim, será analisada a Resolução n. 106 do CNJ, de 6 de abril de 2010, como expoente do novo planejamento estratégico do Poder Judiciário, de modo a desvendar as diretrizes e perspectivas que podem advir desse planejamento e sua interferência no comportamento e no papel dos juízes neste processo.

2. A lei e as brechas da lei

Ubi societas ibi jus2. O brocardo latino encontra seu fundamento de validade quando se analisa a origem e o desenvolvimento das sociedades humanas. No estágio primitivo, os seres humanos se reuniam em núcleos familiares que por sua vez se organizavam em tribos ou clãs, alheios e hostis a quaisquer indivíduos ou grupos estranhos ao seu meio. As disputas entre clãs eram resolvidas pela força, até o momento em que a racionalidade humana conseguiu estabelecer regras para garantir soluções pacíficas para os conflitos.

Com as regras de convivência estabelecidas, as sociedades humanas puderam evoluir do estágio tribal e de barbárie, tornando possível a ocorrência de interações pacíficas e ordenadas entre clãs, tribos e povos que não guardavam relações de parentesco entre si, formando assim o que irá se tornar a sociedade civil.

No entanto, o estabelecimento de regras de convivência, por si só, eram incapazes de garantir a paz social, uma vez que os conflitos continuaram a existir. Era então necessário que essas regras fossem efetivadas através do uso da força (guerreiros) ou da ameaça de sanções ainda piores (sacerdotes), o que contribuiu para a criação de um Direito como ordem coativa e impositiva, não sujeita propriamente à racionalidade humana e/ou a participação democrática.

A partir do fim da Idade Média, o pensamento iluminista possibilitou o desenvolvimento de um novo pensamento jurídico, voltado para a necessi-dade de separação entre Direito, moral e religião, os princípios liberais e o estabelecimento da figura do Estado como ente externo e regulamentador das relações da sociedade civil. Destaca-se ao final desse período o pensamento de Kant, cujo conceito de imperativo categórico3 influenciou de maneira direta a concepção de Direito baseada em valorações de dever-ser criadas a partir de uma ordem racional definida e garantida pelo Estado através do processo republicano.

Tal concepção do Direito atingiu seu ápice com o positivismo jurídico que teve seu apogeu em Hans Kelsen e entrou em declínio na segunda metade do século XX, por não ter sido capaz de estabelecer uma ordem jurídica racional4 e eficaz capaz de harmonizar as relações sociais.

O desvirtuamento e declínio da racionalidade positivista no Direito podem ser explicados pela análise dos fundamentos filosóficos que lhe originaram. No pensamento moral, de acordo com imperativo categórico kantiano, a identidade entre o ser e o dever-ser se manifesta no interior da racionalidade de cada indivíduo, surgindo então o conhecimento do certo e do errado. No entanto, esse conhecimento não é ingênuo. Como demonstrado na filosofia hegeliana, "a partir do momento que surge a consciência do certo (dever-ser) também surge a consciência do errado (não dever-ser)"5.

Em outras palavras: a partir do momento em que o indivíduo adquire a consciência do que é certo (dever-ser) também adquire a consciência do que não é certo e, o que é mais grave, do que pode parecer certo aos olhos de outrem. O indivíduo detentor desse conhecimento pode, por sua vez, optar por adequar sua conduta de modo a promover a identidade entre o ser e o dever-ser ou tão somente aparentar essa identidade para o mundo exterior.

Configura-se assim aquele que pode ser, na verdade, o grande paradoxo do Direito: a partir

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do momento em que uma lei é criada para proteger determinado valor, tudo aquilo que não se encontra abrangido pela lei passa também a não fazer parte do valor. Ou seja, a proteção àquele valor passa a ser compreendida e limitada pela forma da lei. Em termos de senso comum, pode-se dizer que, junta-mente com a lei, surgem também as brechas da lei.

O Direito positivo, portanto, deixa de efetivar valores materiais para constituir uma ordem jurídica de natureza formal. O comando normativo da lei passa a ter um fim em si mesmo e não mais ser um meio para a realização de valores na sociedade.6

Deste modo, se uma lei garante determinado direito ou impõe determinado dever em caráter abstrato, o cumprimento formal da norma passa a prevalecer sobre a conduta desejada no caso concreto7.

Ainda, não raro, muitas vezes a disposição normativa passa a ser interpretada contrariamente ao valor material que originalmente visava a resguardar8.

Essa realidade culmina na criação de estratégias e condicionamento de condutas a partir das disposições formais da lei, o que por sua vez leva à criação de estruturas burocráticas e parasitárias, criando uma nova realidade abstraída dos valores e necessidades que deram origem à formulação da lei9.

A evolução dessa estrutura burocrática, na acepção kafkaniana10 do termo, irá, por sua vez, contribuir para a criação de toda uma indústria voltada não para a solução de conflitos, e sim para atender uma indústria que se alimenta do conflito. O resultado é o desenvolvimento de um pensamento jurídico voltado para o combate e de uma estrutura judiciária cada vez mais inchada, o que resulta em morosidade e ineficácia da prestação jurisdicional.

E é justamente em função desses problemas que a desburocratização surge como necessidade no mundo pós-moderno, tendo na busca pela celeridade e pela eficiência suas principais linhas de frente para a superação do modelo anterior.

Com efeito, não se nega a necessidade da desburocratização. No entanto, não se pode cair no erro de presumir que essas novas soluções estão imunes ao problema da inexistência de conhecimento ingênuo do certo e errado. Ao contrário. É preciso ter em mente que quaisquer medidas normativas e plane-jamentos estratégicos traçados pela lei também irão interferir diretamente na compreensão dos valores celeridade e eficiência.

Se por um lado é extremamente complexo obter celeridade e eficiência na prestação jurisdicional sem abrir mão de outros valores como justiça e equidade, por outro lado é bem mais simples atender parâmetros formais para aferir celeridade e eficiência e também é ainda mais fácil formular proposições que apenas aparentam conferir celeridade e eficiência.

Portanto, é necessário novamente indagar qual celeridade e qual eficiência estão sendo buscadas e se a forma pela qual esses conceitos estão sendo compreendidos é adequada para solucionar os problemas do Judiciário.

3. A sociedade de consumo e a pressão mercadológica

Intrinsecamente relacionada com a questão da crise do positivismo está a ascensão do chamado pensamento pós-moderno, cujas transformações sociais consolidaram o desenvolvimento da chamada socie-dade de consumo, marcada por um individualismo exacerbado e pela hipertrofia do presente, ou seja, a necessidade e dependência de maximização do uso do tempo livre. Gilles Lipovetsky demonstra esse processo de ruptura alcançado na pós-modernidade, denominando-a de hipermodernidade:

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