A cultura da sociedade enquanto fator de contenção ou de estímulo à corrupção

AutorEmerson Garcia
Ocupação do AutorDoutor e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa
Páginas23-38
Combate à Corrupção na Visão do Ministério Público 23
I. A cultura da sociedade
enquanto fator de contenção
ou de estímulo à corrupção
Emerson Garcia1
SUMÁRIO. 1. Aspectos introdutórios. 2. Os valores como diretrizes
comportamentais. 3. A tensão dialética entre cultura e juridicidade e a
propagação da corrupção. 4. Epílogo. 5. Referências.
1 Aspectos introdutórios
A corrupção é um mal muito difundido nos mais variados círculos
de convivência humana. Trata-se de fenômeno multifacetário, sendo
tarefa assaz difícil apresentar uma relação exauriente de todas as suas
formas de manifestação.
Em sua expressão mais comum, pode variar desde a singela entrega
de recursos para que um agente, público ou privado, pratique ou deixe
de praticar atos que se ajustem à sua posição jurídica, e avançar até a
estruturação de relações plúrimas, em que, sequencialmente, um agente
ofereça vantagens a um segundo agente, este a um terceiro e assim suces-
sivamente, até que o ciclo se feche no primeiro, que somente então
será bene ciado pelo ato inicial.
1 Doutor e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista
em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (An-
tuérpia – Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa.
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Consultor Jurídico da Procu-
radoria-Geral de Justiça e Diretor da Revista de Direito. Consultor Jurídico da Associação
Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Membro da American Society
of International Law e da International Association of Prosecutors (Haia – Holanda). Membro
Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).
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Coordenadores: Edson Azambuja, Octahydes Ballan Junior e Vinícius de Oliveira e Silva
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Pode, igualmente, assumir contornos mais sutis, sendo, não raro,
encoberta por relações de companheirismo que redundarão na obten-
ção de vantagens e no rompimento com a impessoalidade. É o que
ocorre, por exemplo, quando um agente recebe benesses, como con-
vites para eventos internacionais, com todas as despesas pagas, e suas
decisões irão projetar-se sobre a esfera jurídica do benfeitor. Nesses
casos, ensinam as regras de experiência que benesses fruticam no-
vas benesses. Não é incomum, aliás, que a relação sequencial entre as
benesses siga um código silencioso, o que busca afastar da conduta,
ao menos sob o olhar obnubilado dos atores envolvidos, o rótulo da
ilicitude. Anal, tudo não passara de mera relação de amizade.
Em não poucas ocasiões, a corrupção é mais que atrativa. Des-
vios morais à parte, permite que obstáculos sejam contornados e ns
alcançados com maior celeridade e menor dispêndio de energia, não
raro com reduzidos custos para o interessado. Na composição dessa
equação, é igualmente considerada a perspectiva de descoberta e puni-
ção do ilícito. Apesar dos benefícios que tende a oferecer, a corrupção,
quando se propaga e generaliza, produz efeitos desastrosos no ambien-
te sociopolítico.
Os custos sociais da corrupção são simplesmente incalculáveis.
Os danos mais perceptíveis são aqueles decorrentes do desvio ou do
não ingresso de recursos nos cofres públicos. Mas também existem
aqueles danos que, embora não sejam vertidos em cifras monetárias,
causam imensos prejuízos à coletividade. A criação de códigos parale-
los de conduta, à margem da juridicidade, talvez seja o mais deletério
desses efeitos. Práticas injurídicas e de grande potencial lesivo passam
a ser aceitas com naturalidade pelos mais variados seguimentos sociais,
o que gera visível ruptura entre referenciais deontológicos, colhidos no
direito posto, e axiológicos, inerentes ao ambiente sociopolítico.
Mais que um ato ilícito, a corrupção exterioriza um especial
modo de ser e de interagir com o meio circundante, em uma visão de
mundo que atribui primazia ao interesse individual sobre o coletivo.
Não é incomum que faça surgir uma espécie de “síndrome de Janus”.
Janus é o Deus romano dos inícios e das escolhas. É artisticamente
representado por uma gura masculina com duas faces, que olham em
direções opostas. Os olhares em direções opostas podem representar
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