Cultura juridica e diaspora negra: dialogos entre Direito e Relacoes Raciais e a Teoria Critica da Raca/Legal culture and black diaspora: dialogues between Law and Race Relations and Critical Race Theory.

AutorGomes, Rodrigo Portela

Introdução (1)

No texto "Twenty Years of Critical Race Theory: Looking Back To Move Forward", além de discutir os aspectos específicos que permitiram o surgimento da Critical Race Theory (CRT) nos EUA, Kimberlé Crenshaw (1995; 2002; 2011) aponta que é importante explorar a trajetória desse movimento acadêmico-político para extrair as repercussões contemporâneas sobre o problema do racismo na sociedade e, com isso, fortalecer os estudos jurídicos sobre o tema.

Por meio dessa estratégia, mas considerando o distanciamento de ordem temporal, espacial, política e subjetiva sob o qual me encontro em relação à abordagem do tema, objetivo com este artigo apresentar algumas contribuições desenvolvidas no Brasil, a partir dos anos de 1980, para compreender os impactos do racismo na formação do pensamento e da ordem jurídica. Para identificar os desdobramentos dessas produções na atualidade, concentro esforços em observar a interação de juristas negras brasileiras para a fundação e o desenvolvimento do campo Direito e Relações Raciais (2) no Brasil. Nestes termos, o trabalho também indica possibilidades de diálogo com o movimento acadêmico-político estadunidense: Critical Race Theory.

Como justificativa para uma abordagem dialógica entre os dois campos, argumento que esses movimentos críticos nos Estados Unidos da América e no Brasil são oriundos de intensos fluxos interculturais e multidisciplinares resultantes de eventos como as lutas pelos direitos civis, os processos de descolonização nos países africanos e as lutas contra os regimes ditatoriais na América Latina. O intercâmbio entre esses movimentos críticos é, por vezes, ocultado nas estratégias de transposição ou sobreposição de postulados teóricos e metodológicos dos estudos da CRT sobre a produção brasileira (3).

Por isso, considero importante um esforço de sistematização das formulações contidas em obras produzidas no nosso contexto e das relações desenvolvidas a partir dele, inspirado na prática científica da CRT (DELGADO, 1993). Ciente disso, a abordagem interativa é levada a efeito por meio de uma revisão de estudos críticos sobre a relação entre racismo e direito no Brasil, tendo como ponto de partida a interlocução protagonizada por pensadoras brasileiras que experimentaram de diversos modos o trânsito amefricano (4) na trajetória acadêmico-política (GONZALEZ, 2018).

Assim, na primeira seção do artigo, apresento aproximações sobre os textos considerados fundantes do campo Direito e Relações Raciais, contextualizando e repercutindo a matriz de pensamento de duas juristas negras brasileiras que organizam as bases deste movimento acadêmico-político: Eunice Aparecida de Jesus Prudente (5) e Dora Lúcia de Lima Bertúlio (6). Noutra seção, recupero as formulações extraídas da geração destas intelectuais e me proponho a identificar as agendas de pesquisas formuladas por uma segunda geração de pensadoras negras deste campo, como: Ana Luiz Pinheiro Flauzina (2006), Ísis Aparecida Conceição (2009) e Thula Rafaela de Oliveira Pires (2012).

Por último, em uma terceira parte, por meio do conceito de diáspora negra, associo as formulações já consolidadas no interior da Critical Race Theory (7) às contribuições criadas no pensamento jurídico crítico brasileiro (8) para conformar uma ideia de justiça racial como um movimento de cultura jurídica transnacional (HALL, 2013; CONCEIÇÃO, 2017). É por meio destas escalas de revisão bibliográfica e da sistematização de postulados teórico-metodológicos (DELGADO, 1993), que concluo o trabalho defendendo que no trânsito de ideias-práticas entre a Critical Race Theory e o Direito e Relações Raciais existem premissas para formulação de um ideal de justiça na diáspora negra (HALL, 2013; CONCEIÇÃO, 2017).

  1. Revisitando estudos jurídicos críticos fundamentais sobre raça e racismo no Brasil

    Para aproximar as contribuições teórico-metodológicas dos movimentos Critical Race Theory e Direito e Relações Raciais, entendo primeiro ser necessário sistematizar algumas das formulações (teóricas, metodológicas e epistêmicas) já desenvolvidas por intelectuais brasileiras ao longo de 40 anos de enfretamento ao racismo no campo jurídico (DELGADO, 1993). Compreendo a importância de estudos sistemáticos para o desenvolvimento de um determinado campo científico, por ser possível identificar postulados que uma dada cultura jurídica elaborou. Para o presente texto, através do intercâmbio de pesquisas sobre racismo e direito (9), apresento a revisão de uma parcela dos estudos jurídicos críticos raciais no Brasil.

    Nesta primeira etapa, o enredo se centra na produção de duas juristas negras brasileiras: Eunice Prudentes e Dora Bertúlio. Delimito nestas obras a primeira revisão, pois identifico nelas uma matriz acadêmico-política compartilhada que se traduz em formulações fundantes do Direito e Relações Raciais e que ainda têm sido primordiais para o desenvolvimento de novas agendas de pesquisa no Brasil. O tópico compreende: i) a caracterização do silenciamento dos juristas sobre raça e racismo como problema fundante destas pesquisas; ii) os postulados metodológicos, epistêmicos e teóricos identificados nas obras como orientadores para o desenvolvimento de novas agendas de pesquisa sobre racismo e direito.

    Os primeiros estudos sobre o fenômeno do racismo no campo jurídico, realizados a partir do final dos anos de 1970 até o final dos anos de 1980, estão inseridos em um contexto de grave crise econômica e instabilidade política do país. Além do aumento da inflação, das taxas de desemprego e das políticas de recessão, o período também é marcado pelo processo de redemocratização. A rearticulação política na sociedade civil restabeleceu os direitos civis e políticos que culminaram, ao final desse período, nas eleições diretas de parlamentares (1986) e na convocação da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988).

    No caso da população negra, foi substancial a atuação de frentes do movimento negro entre as décadas de 70 e 80, do século XX, para a inscrição de instrumentos antirracistas (10) no novo pacto constitucional, inaugurado em 1988. A sua agência, tanto no campo acadêmico como no político, produziu esforços voltados à ruptura dos mitos racistas que conformavam os arranjos sociais e institucionais no Brasil, desde o pósabolição. Essa conjunção político-científica acompanha a consolidação do próprio Estadonação brasileiro, a exemplo das ideologias eugenistas que orientaram as políticas estatais até os anos de 1920, período em que se passa a assumir a miscigenação como signo de nação moderna no Brasil (BERTÚLIO, 1989).

    As ideologias racistas são o problema fundante do movimento jurídico crítico sobre o racismo no Brasil, sendo central nas pesquisas desenvolvidas por Eunice Prudente (11) (1975-1980) e Dora Bertúlio (12) (1985-1989). As obras dessas autoras denunciaram o aparato legal e o pensamento jurídico conformados pelo racismo científico e pela política nacionalista. Desse modo, uma preocupação dessas pesquisas foi desconstruir os aspectos de neutralidade e imparcialidade conferidos ao direito. Por isso, identifico como o primeiro desafio do debate racial no campo jurídico enfrentar o apagamento da ideia de raça e racismo. A partir desse marco, a produção crítica no direito brasileiro passou a ser responsabilizada, nos anos de 1980, por sua omissão quanto à problemática do racismo na estruturação da cultura jurídica.

    A professora Dora Bertúlio abre o texto "Direito e Relações Raciais: uma introdução crítica ao racismo" (1989) exatamente com essa observação: "a questão racial no Brasil tem sido tratada, ainda, com a displicência típica à atenção dada aos demais problemas de todo o povo brasileiro, quer na esfera política, académica ou jurídica" (BERTÚLIO, 1989: 12). Essa problematização do racismo como pressuposto para construção do pensamento jurídico nacional, também esteve presente na pesquisa desenvolvida por Eunice Prudente, intitulada "Preconceito racial e igualdade jurídica no Brasil" (1980) (13). A dissertação foi um marco para o campo Direito e Relações Raciais, sendo, até aqui, o primeiro estudo jurídico a posicionar o racismo como um problema central. Nos objetivos do trabalho, aponta que a sua pesquisa tem como problemática o negro brasileiro e inicia sua argumentação observando "que a escala socioeconómica, no Brasil, corresponde também a uma escala racial" (1980: 2).

    Fica latente, com isso, que o problema está atrelado ao negacionismo presente nos pressupostos epistêmicos, teóricos e metodológicos da tradição jurídica liberal, que, no Brasil, instrumentalizou os signos racistas em favor da manutenção das desigualdades raciais. A crítica ao liberalismo jurídico pode ser identificada em diversas passagens das obras, quando, por exemplo, Dora Bertúlio afirma que o direito atua na codificação de signos e imagens racistas da sociedade brasileira. Isso ocorreria em um processo no qual o direito informa suas categorias por conteúdos racializados, sem traduzir expressamente o tratamento jurídico desigual.

    A tese jurídica pode ser condensada na expressão "silêncio dos juristas" (14). Dessa categoria, é possível inferir que o apagamento da raça no aparato legislativo e discursivo elaborado ao longo do século XX não constituía a isenção do caráter racializado do direito brasileiro, mas sim o oposto. No período em que desenvolviam suas pesquisas, a ideologia da democracia racial constituía o principal instrumento de bloqueio da crítica racial, conduzindo o aparato discursivo e normativo (15) do Estado brasileiro para uma realidade de suposta harmonia e igualdade racial. Não à toa, nos anos de 1970 e 1980, a hegemonia da democracia racial foi apontada pelo movimento negro como meio de desmobilização do seu "protesto" na esfera pública (RIOS, 2012: 43).

    Quando argumenta que o silêncio dos juristas "é a voz mais alta", Dora Bertúlio (1989: 60) recorda a conjunção de valores - como a miscigenação, a política imigratória, a divisão sexual e...

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