Culture and labor: integration of Black people in Rio de Janeiro/ Cultura e trabalho: a integracao do negro no Rio de Janeiro.

AutorMurad, Larissa Costa

Introducao

Neste artigo tecemos consideracoes sobre o lugar do negro durante o processo de modernizacao do Brasil, a partir da relacao entre trabalho e producao de cultura no suburbio do Rio de Janeiro. Indicamos em particular o movimento de expropriacao e resistencia pelo qual a cultura popular se constitui e constitui o suburbio em suas expressoes afro-brasileiras, sobretudo o samba urbano. Tal movimento envolve a resistencia a segregacao racial em sua forma difusa (FERNANDES, 2008) e, para explicitalo, revisitamos principalmente os escritos de Florestan Fernandes, alem de termos tracado uma releitura dos escritos de Marx, particularmente dos Grundrisse, para expormos a generalizacao do trabalho alienado em sua relacao com a instrumentalizacao da cultura. Quando esta ocorre, o negro e integrado por meio da producao da cultura, porem, como objeto e nao na qualidade de sujeito produtor.

Notamos que a conformacao do suburbio carioca indica a forma de sociabilidade que possibilitou a construcao do samba urbano no Rio como cultura popular; alem disso, aponta as origens e particularidades da segregacao etnica que acompanha a formacao do Brasil em sua condicao de pais de capitalismo periferico que recrudesce em tempos de crise do capital. Esta em questao a forma pela qual o pais vivencia o processo de modernizacao e como este e sentido em um grande centro urbano como o Rio de Janeiro, por esse segmento etnico em particular. Interessa-nos tambem a maneira pela qual o segmento social em foco constroi sua subjetividade nesse movimento ambiguo de producao de cultura e reproducao dessa forma social.

Em condicoes de acumulacao primitiva, a cultura popular so se produziu enquanto originalidade quando configurou resistencia as formas mercantis de producao da vida social, tendo o impacto como recriacao de formas de sociabilidade. Esta e uma nocao fundamental para observar, inclusive, a producao de cultura no suburbio do Rio de Janeiro em seus primordios, no pos-abolicao, momento no qual a sociabilidade negra pode se recriar enquanto formas espontaneas de producao de cultura. No periodo de construcao do suburbio carioca, as formas de sociabilidade espontaneas dos negros recem-saidos da escravidao originam o samba urbano como consequencia das idiossincrasias do proprio processo de modernizacao, bem como das resistencias difusas a generalizacao do trabalho alienado, que surgem no decorrer do mesmo.

Nesse sentido, apos a consolidacao da industria cultural e de entretenimento no pais, as manifestacoes culturais afro-brasileiras sao reapropriadas e ressignificadas enquanto mercadorias culturais, causando uma integracao perversa do negro pela cultura; perversa visto que este se integra tornando-se objeto da cultura ja fetichizada, como podemos observar no samba urbano contemporaneo. Esta integracao se torna questionavel tambem ao observarmos os indicadores sociais referentes a populacao negra brasileira (1), os quais explicitam a permanencia de formas de segregacao difusa (FERNANDES, 2008), sentidas, por exemplo, no mercado de trabalho e no exterminio e encarceramento da juventude negra.

A relacao cultura e trabalho na conformacao do territorio

A producao de cultura popular no Brasil remonta a formas de resistencia de determinados segmentos oprimidos perante o avanco das relacoes sociais mercantis. Cabe ressaltar que o termo cultura popular e entendido aqui a partir da nocao desenvolvida por Raymond Williams (1979; 2007), segundo a qual as palavras possuem sentido historico, ou seja, seu sentido se modifica conforme a mudanca nas praticas sociais. Desse modo, podemos falar em cultura popular a partir das praticas que representaram resistencia ao processo de desenvolvimento das relacoes mercantis no Brasil, no periodo anterior a generalizacao da cultura em sua forma sistemica. Quando ja amadurecidas as relacoes mercantis e consolidada a industria cultural no Brasil, no periodo pos-decada de 1970, o termo cultura popular e ressignificado, passando a denotar um nicho de mercado.

A civilizacao que nasce do processo colonial de acumulacao primitiva se torna urbana pelo deslocamento continuo de grandes contingentes populacionais, por meio da expropriacao continuada e tambem como necessidade inerente ao desenvolvimento do urbano e a instituicao do trabalho livre. Esse processo se inicia e se perpetua com o desenraizamento forcado de diversas etnias, o qual envolve a colonizacao de culturas diferentes e a imposicao da raca como determinante, mesmo na ausencia de um discurso explicitamente racista.

Segundo Cardoso (2006), a exploracao social caracteristica do capitalismo se substantiva no mercado das cidades. Nesse sentido, a construcao de metropoles e inerente ao processo de conformacao do capitalismo. Para Abreu (2013, p. 16), "as areas metropolitanas brasileiras sao, na atualidade, uma das expressoes espaciais mais acabadas da formacao social brasileira", ou seja, no processo de construcao das regioes metropolitanas se substantivam as contradicoes inerentes ao desenvolvimento desta forma social sistemica. O autor destaca o lugar do Rio de Janeiro como modelo urbano, o qual reflete caracteristicas da formacao social como um todo:

O caso do Rio, entao, parece ser ainda mais significativo, pois, alem de ter sido ai que se localizou a capital do Brasil de 1763 a 1960, a cidade foi a mais populosa do pais durante quase todo esse periodo, so perdendo essa posicao privilegiada para Sao Paulo na decada de 1950. Devido a isso, o Rio de Janeiro foi, durante muito tempo, um modelo urbano para as demais cidades brasileiras. E esta funcao de servir de modelo e de refletir, por conseguinte, as caracteristicas da formacao social num determinado momento, parece ainda ser um monopolio seu. (ABREU, 2013, p. 16; p. 17).

O Rio de Janeiro experimenta o inicio de sua urbanizacao ja no seculo XIX, com a vinda da familia real portuguesa em 1808 e as consequentes mudancas na sociabilidade local. A vinda da familia real implica em novas necessidades materiais, impondo maior nivel de estratificacao social ao Rio, cuja maioria da populacao ate entao era escrava. Combinando esse fator a independencia politica e ao boom do cafe, o Rio passa a atrair mais trabalhadores livres e capitais internacionais a partir principalmente de meados do seculo XIX. Ate entao a maioria de sua populacao era escrava. Rio de janeiro, Sao Paulo e Minas Gerais eram as tres provincias com maior concentracao de escravos.

Lopes (2008) destaca os fatores externos de atracao de imigrantes para o Rio a partir do final do seculo XIX. O principio da substituicao do escravo por equipamentos agricolas em algumas regioes do pais, combinado aos efeitos da seca no Nordeste, provoca a venda de grandes contingentes de escravos para os grandes centros--especialmente Rio e Sao Paulo. Com a abolicao da escravatura, a concentracao populacional no Rio aumenta devido aos processos migratorios dos entao libertos, desencadeado por diversos fatores.

Com a abolicao da escravatura, entretanto, e que a capital do Imperio vai ter sua populacao, de fato, aumentada. Aos migrantes do Vale do Paraiba, que para o Rio de Janeiro continuam vindo desde a falencia da lavoura cafeeira na regiao, aos veteranos da Guerra do Paraguai, aos flagelados da Grande Seca vem juntar-se, agora, mais e mais negros, oriundos das mais diversas regioes do Pais, mas principalmente das provincias vizinhas. (LOPES, 2008, p. 39).

Ou seja, sendo o Rio de Janeiro a capital da Republica, seu processo de urbanizacao, ate entao incipiente, combinado as consequencias das transformacoes sociais que ocorriam em todo o Brasil, atraia contingentes de imigrantes e recem-libertos. Em 1890, 34% dos habitantes da capital eram "negros ou mesticos", dentre os quais grande parcela era oriunda de outras regioes do pais (LOPES, 2008). A afluencia dos imigrantes para o Rio era, obviamente, direcionada a area central.

O processo de urbanizacao ganha forma no seculo XX com a Reforma Pereira Passos (1903), a qual representou politicamente uma tentativa de adequar a estetica local aos padroes dos paises capitalistas desenvolvidos. Isto implicou na expulsao da populacao pobre e negra do espaco da "cidade formal", cujo marco foi a derrubada generalizada dos corticos. Construidos a partir das necessidades das classes populares de morar perto das areas centrais, onde se concentravam os empregos relacionados a prestacao de servicos (minimamente acessiveis aos ex-escravos), os corticos ja eram perseguidos e estigmatizados desde 1893 pela administracao do prefeito Barata Ribeiro, momento no qual se inicia

um processo de intervencao direta do Estado sobre a area central da cidade, que viria a se intensificar sobremaneira a partir do inicio do seculo, e que seria responsavel pelo aumento da estratificacao social do espaco carioca. (ABREU, 2013, p. 50).

Ate o inicio do seculo XX, o Centro do Rio e suas imediacoes concentravam tambem a incipiente atividade industrial, caracterizada pelo "baixissimo nivel de mecanizacao" e pela existencia de industrias consequentemente capazes de absorver grande quantidade de forca de trabalho (ABREU, 2013, p. 54-55). Porem,

O final do seculo XIX nao se caracterizou apenas pela multiplicacao de fabricas no Rio de Janeiro. Outra face da mesma moeda, coincidiu tambem com o esgotamento do sistema escravista, com o consequente declinio da atividade cafeeira na Provincia do Rio de Janeiro e com o grande afluxo de imigrantes estrangeiros. Resultou dai um processo de crescimento acelerado via migracao, que agravou consideravelmente o problema habitacional da cidade, pois levou ao adensamento ainda maior dos corticos e ao recrudescimento das epidemias de febre amarela que assolavam a cidade periodicamente. (ABREU, 2013, p. 57).

O discurso higienista ganha forca no inicio do seculo XX, configurando inclusive uma forma de pressao social que se fortalece com a intervencao direta do Estado no ambito da reproducao da forca de trabalho, levada...

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