Da compensação na falência no âmbito do sistema financeiro nacional

AutorFabrício Gonçalves de Souza Sabina
Páginas137-155

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1. Introdução

A promulgação da Lei n. 11.101 em 9 de fevereiro de 2005, a qual regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do devedor, inaugura no ordenamento jurídico brasileiro um cenário novo, uma vez que a postura mais rígida e inflexível do legislador denotada no Decreto-lei n. 7.661/1945, antiga Lei de Falências, foi eclipsada pelo paradigma norteado pelo princípio da preservação da empresa.

Em face da adoção de novo paradigma, a ponto de abandonar e substituir institutos antigos e já consagrados, como a concordata, por exemplo, o legislador não ficou imune à criação de direito novo, dessa forma, inaugurando no âmbito do direito falimentar, a faculdade prevista no art. 119, VIII,1 da referida lei que disciplina a matéria.

Nesse novo contexto e considerando-se a importância e reflexos sociais de um instrumento normativo dessa natureza e magnitude, dificilmente a pena do Poder Legislativo estaria livre de dar génese a questões polemicas, de elevada reflexão doutrinária e possível divergência juris-prudencial. Sendo assim, resta saber, na hipótese de legiferação de preceito ainda não existente no campo jurídico, se já se encontram claramente presentes na norma todos os elementos necessários a sua compreensão e aplicação e se a mesma não se encontra dissociada dos princípios que a regem.

Em suma, o que interessa e o que muito se deve discutir e analisar refere-se à inovação trazida no bojo do novo Estatuto Falimentar concernente à possibilidade especialíssima2 do exercício do direito de com-

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pensação no âmbito do sistema financeiro nacional, conforme estatui o art. 119, VIII, da citada lei.

Por meio de uma leitura rápida do dispositivo, os menos informados seriam capazes de propugnar pela tese da clareza e facilidade de aplicação do mesmo. No entanto, a leitura mais detida, mesmo que pautada em uma espécie de interpretação mais simples, a literal, não é capaz de corroborar esse raciocínio apriorístico e elementar. Destarte, do dispositivo em análise surgem as seguintes indagações: a) qual a espécie de compensação prevista na regra: legal, judicial ou convencional?; b) quais são os credores que possuem no âmbito de sua esfera de direito a prerrogativa da oposição da compensação nos termos da especialidade legal?; c) quais são os requisitos para o exercício de tal direito?; d) o que a lei entende por regulamento e qual(is) ato(s) normativo(s) deve(m) ser observado(s)?; é) quais são os critérios (princípios e regras) que devem pautar e conduzir a liquidação do valor compensável?; qual o momento oportuno para o exercício do direito de compensação?; g) a norma em comento possui eficácia plena, sendo de aplicação direta e imediata?; e, h) como harmonizar o art. 119, VIII em comento com os princípios dos sistemas constitucional e falimentar?

Em face de todo o exposto a título de introdução, essas são as considerações iniciais e as respectivas indagações objeto desse artigo.

2. Panorama geral do instituto da compensação na falência

O instituto da compensação, matéria eminentemente de direito civil, encontra seu locus de prescrição no Código Civil, Lei n. 10.406/2002, do art. 368 ao 380, sendo, portanto, erigido à categoria de normas básicas e gerais aplicáveis às relações obrigacionais como um todo, incluindo, dessa forma, o direito concursal. Por esse viés, a princípio, as prescrições çivilistas tangentes a esse instituto devem ser observadas pelos representante do Ministério Público, administrador judicial, magistrado e, principalmente, pelos credores e devedores recíprocos da massa falida, no âmbito do processo falimentar.

Porém, uma vez trasladada a vigência dessas normas visando a sua eficácia no âmbito do direito falimentar, mister se faz tecer considerações a respeito das implicações e eventuais ressalvas em face dos princípios que regem o direito concursal, com o fito de evidenciar alguns pilares básicos, os quais servirão de premissas para as indagações objeto desse articulado, e, que, por sua vez, são encontrados no art. 122 da Lei de Falências.

A primeira constatação que se vislumbra tem como enunciado que o instituto da compensação, com seus princípios e regras, é aplicável de modo geral3 na falência,4 em

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face da abrangência de validade e repercussões dos efeitos das normas codificadas sob a epígrafe dos direitos das obrigações e, porque, conforme entendimento doutrinário partilhado pela opinium comune docturom, a compensação, independentemente de sua origem - legal, judicial ou convencional, conforme preferem distinguir alguns civilistas -, uma vez identificada a reciprocidade de crédito e débito, opera-se "independentemente da vontade das partes, mesmo na sua ignorância e a despeito delas".5

A segunda constatação que se obtém, ou seja, depois de identificada a existência do direito ao exercício da compensação por parte de um credor da massa, esse instituto encontra sua eficácia, desde que respeitadas as exceções definidas pelo legislador na seara especial do direito falimentar e seus princípios. Tanto não se pode afirmar o contrário, que a razão do dispositivo que define as regras próprias referente à compensação no âmbito jurídico falimentar, deixa claro que sua prescrição tem como desiderato apenas traçar algumas limitações no plano vasto e amplo da aplicação desse instituto em face das peculiaridades de algumas hipóteses.6 Sendo assim, como con-sequência imediata do raciocínio anterior, a terceira constatação propugna pela tese segundo a qual, naquilo que o legislador falimentar considerou interessante limitai-as hipóteses de possibilidade de oposição da compensação por seus titulares, assim expressamente o fez.7

Portanto, com base no dispositivo legal ora em comento, tem-se uma quarta conclusão: a lei somente limita ou cria exceções à aplicação da regra geral, que, por sua vez, é a da possibilidade da compensação, naqueles casos onde potencialmente possa haver fraude, podendo-se, portanto, chancelar a tese de que a inclinação do legislador é no sentido de permissão da compensação.

A quinta conclusão defende a ideia da necessidade de identificação das variáveis a que a compensação deve obedecer, em face das peculiaridades advindas de sua concorrência com o instituto da falência. A razão não é outra senão por causa da especialidade do direito concursal, uma vez que a vigência do instituto da compensação, embora não afastado de seu âmbito, encontra eficácia de acordo com a codificação civilista e, também, nos exatos termos da legislação falimentar, pela qual, segundo o art. 115, "os credores somente podem exercer seus direitos na falência, na forma determinada pela Lei 11.101/2005".8

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Por fim, não buscando estender em demasia a discussão em relação à eficácia dos princípios e regras gerais do instituto da compensação no direito concursal, mas, que, no entanto, oferecem algumas balizas para as respostas às indagações propostas neste articulado; e, também, não visando a desvendar as nuances desse instituto nos moldes da prescrição do art. 122 da Lei Falimentar, bem como eventual manifestação de inconstitucionalidade desse dispositivo;9 o que interessa é vislumbrar os reflexos da inovação trazida pelo art. 119, VIII da mesma lei.

3. O art 119, VIII, da Lei n 11.101/2005

Conforme, se pode aduzir pelo exposto acima, a dogmática da compensação na dinâmica das relações falimentares não é tão simples, embora, não se tratando tal instituto de fenómeno jurídico recente no sub-ramo do direito falimentar, tendo sido prescrito desde a revogada Lei n. 859/1902, art. 27. Entretanto, o legislador, abandonando sua postura inicial de tão-somente optar por limitar a esfera de abrangência do instituto da compensação, acrescentou mais elementos suscetíveis à controvérsia doutrinária sobre esse assunto, ao decidir, hodier-namente, por ampliar essa abrangência, ao prescrever a hipótese especialíssima volta-da para a possibilidade de compensação no âmbito do sistema financeiro nacional.

A título de informação, vale destacar que o atual Estatuto Falimentar, com algumas diferenças em comparação com o anterior, prescreve os efeitos da falência nas obrigações do falido, porém, fazendo a seguinte divisão: a) de uma forma geral, em relação aos direitos de todos os credores, portanto, referindo-se às obrigações passivas do devedor (art. 115 e art. 116); b) de uma forma especificarem face dos contratos bilaterais (art. 117) e unilaterais (art. 118); e, por fim, c) levando em consideração algumas relações contratuais e legais especiais, sui generis e/ou peculiares (art: 119 ao art. 128).

Nesse diapasão, o instituto da compensação insere-se como uma relação jurídica especial e a prerrogativa atribuída aos agentes do sistema financeiro nacional como uma relação jurídica, mais que especial, especialíssima, cujos efeitos o legislador' considerou relevante tratar de forma específica e apartada da disciplina geral falimentar referente à compensação. Dessa forma, sob o capítulo da falência, na seção dos efeitos da decretação da falência sobre as obrigações do devedor, no art. 119, VIII, portanto, nesse ponto da lei encontrando seu locas, apresenta-se uma das grandes inovações da atual Lei de Falências.

3. 1 Espécie

Em que pese haver entendimento contrário10 a compensação pode ser classifi-

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cada como legal, judicial ou voluntária. Sem trilhar pelos caminhos terminológicos das demais espécies, torna-se mais interes-sante elucidar os contornos e nuances daquela que...

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