Da desnecessidade de intervenção do direito penal quando da dissolução da entidade familiar

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas429-456

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Introdução

O estudo ora proposto buscará construir fundamentos teóricos aptos a justificar a desnecessidade de intervenção do Direito Penal quando da dissolução da entidade familiar. Com efeito, a relevância do presente estudo reside, notadamente, na mudança de paradigma sofrido pelo Direito das Famílias em razão do advento da Constituição Federal de 1988, a qual foi responsável por tornar a entidade familiar um instrumento a serviço do desenvolvimento da dignidade de seus membros e, por consequência, promover a substituição da noção de culpa

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pela concepção de ruptura, sendo que o grupo familiar apenas é tutelado na exata medida em que for capaz de preservar a dignidade de seus membros.

Nesse passo, a fim de responder a problemática apresentada, bem como se valendo da realização de pesquisa bibliográfica e documental e da adoção de procedimento metodológico dedutivo, realizado pelo procedimento técnico de análise textual, caberá, inicialmente, analisar as questões relativas à amplitude, formação e dissolução das entidades familiares no sistema jurídico brasileiro. Diante disso, analisar-se-á a adoção do instituto da culpa pelo Direito das Famílias e a insubsistência de sua discussão após o advento da Emenda Constitucional nº 66/2010. Em seguida, abordar-se-á a constitucionalização do Direito Penal, enfocando, nesse contexto, a definição dos bens jurídicos penais e os princípios da intervenção mínima, da fragmentariedade e da subsidiariedade. Ao final, buscar-se-á justificar a desnecessidade de intervenção do Direito Penal quando da dissolução da entidade familiar.

1 Da entidade familiar: amplitude, formação e dissolução

A sociabilidade do ser humano é característica inquestionável, haja vista necessitar se organizar em grupos para poder suprir suas necessidades físicas, psíquicas e culturais, em busca de sua realização pessoal. Como estrutura social básica está a família, entendida como a reunião de pessoas ligadas por vínculos sanguíneos e afetivos, a qual é responsável pelo desenvolvimento da personali-dade de seus integrantes, bem como pela construção de suas potencialidades em prol da convivência em sociedade. Logo, a família representa a unidade primária de associação dos indivíduos e, portanto, a unidade fundamental da sociedade.

Visando estabelecer padrões de moralidade, a fim de promover a harmonia social, houve a imposição, pelo Estado, de diretrizes e proibições a serem observadas na formação da família. Assim, tem-se a institucionalização da entidade familiar, a qual passou a ser identificada apenas com o instituto do casamento. Dessa forma, a partir do intervencionismo estatal, “os vínculos interpessoais, para merecerem aceitação social e o reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio”.2

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A identificação da família à união de pessoas pelo casamento esteve presente na legislação pátria desde a instituição da República. De fato, a Constituição Federal de 1891, em seu art. 72, § 4º, dispunha que “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”. Já a Constituição Federal de 1934, em seu art. 144, previa que “A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado”. Assim, o casamento era reconhecido como exclusiva entidade familiar e, como tal, a única idônea a receber proteção do Estado.

Em face disso, entende-se por casamento – e, portanto, por família – a união legal entre homem e mulher, celebrado perante o Estado, em observância a normas de ordem pública, que cria família e estabelece comunhão plena de vida com base na imposição de direitos e deveres conjugais. Assim, o casamento corresponde à instituição jurídica e social originária das justas núpcias, contraídas por duas pessoas de sexos distintos. “Abrange necessariamente os cônjuges, mas para sua configuração não é essencial a existência de prole”.3No âmbito infraconstitucional, verifica-se que o Estatuto Civil de 1916 adotou a ideia de identificação da família ao casamento, vedando o reconhecimento de quaisquer direitos às relações consideradas espúrias, adulterinas ou concubinárias. Dessa forma, impunha a preservação da família matrimonial, na medida em que não se restringia apenas a atribuir responsabilidades aos cônjuges, mas sim interferia na vida íntima do casal, impondo deveres e assegurando direitos de observância obrigatória na constância da união conjugal. Por isso, o casamento era indissolúvel, sendo desconstituído somente em caso de anulação, para a qual era indispensável a ocorrência de erro essencial ou erro quanto à identidade e/ou personalidade do outro.

Com efeito, os atos de infração aos deveres conjugais, dentre eles o de fidelidade recíproca, davam causa à dissolução da sociedade conjugal pelo desquite, aplicando-se sanções ao cônjuge culpado. Com a decretação do desquite, cessavam-se os deveres conjugais, contudo não se dissolvia o vínculo matrimonial, “o

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que impedia os desquitados de buscarem reconstruir suas vidas mediante novo casamento”.4Em 1977, com o advento da Lei nº 6.515Lei do Divórcio – houve a instituição da dissolubilidade do vínculo matrimonial, a qual era possível desde que houvesse prévia separação judicial – nova designação atribuída ao desquite – por mais de três anos ou separação de fato pelo prazo de cinco anos, se iniciada antes de 1977. Outrossim, a separação judicial consensual só poderia ser requerida pelo casal após dois anos de casados, e o divórcio só viria três anos após o trânsito em julgado da homologação da separação. Ressalte-se que, em sua redação original, a lei previa que o pedido de divórcio, em qualquer de seus casos, somente poderia ser formulado uma única vez (art. 38, da Lei nº 6.515/77).5Assim, verifica-se que, até o advento da Constituição Federal de 1988, a legislação dedicava especial atenção à proteção do vínculo conjugal e da coesão formal da família, em detrimento da realização pessoal dos seus integrantes. Buscava-se a máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a família fundada no casamento como um bem em si mesmo, de essencialidade inquestionável. Acreditava-se que as imposições sociais e os mandamentos legais eram capazes de manter os consortes unidos, desprezando, pois, serem os vínculos e pactos afetivos íntimos os únicos responsáveis pela instituição de comunhão de vidas entre o casal.

Contudo, com a entrada em vigor da Carta Magna de 1988, o conceito de entidade familiar sofreu profundas alterações. Ao preceituar, como princípio fundamental da República, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o legislador do Texto Maior impede a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, razão pela qual se tem que: o centro da tutela constitucional se desloca do casamento para as relações familiares dele (mas não unicamente dele) decorrentes; e que a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais,

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éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros [...].6Destarte, a Constituição Federal de 1988, ao adotar o princípio do pluralismo das entidades familiares, reconheceu, ao lado da família conjugal, a união estável (art. 226, § 3º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4º). Ademais, estabeleceu plena igualdade entre homem e mulher no exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal (art. 226, § 5º), além de garantir iguais direitos e qualificações aos filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, proibidas quaisquer designações discriminatórias (art. 227, § 6º).

Dessa forma, a Carta Magna de 1988 foi responsável por promover importante transformação no conceito de família, a qual deixou de ser um organismo preordenado a fins externos, para se tornar “um núcleo de companheirismo a serviços das próprias pessoas que a constituem”.7De fato, não cabe ao Estado-legislador criar o fenômeno familiar, mas apenas tutelar as famílias que se formam naturalmente, de forma a proteger a dignidade de seus membros. Portanto, a família representa o ambiente em que cada pessoa busca a sua própria realização, por meio do relacionamento com outra, ou outras, pessoas, não se restringindo apenas ao casamento, estrutura familiar instituída pelo Estado.

Em face das alterações introduzidas no Direito das Famílias pela Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002 foi responsável por regular a nova concepção de entidade familiar, a qual se caracteriza por ser pluralizada, demo-crática, igualitária substancialmente, além de representar um instrumento para realização pessoal de seus integrantes. Nesse passo, trouxe dispositivos específicos sobre a união estável (arts. 1.723 a 1.727), reconhecendo-a como entidade familiar, caracterizada pela “convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (art. 1.723).

Sendo assim, as pessoas constituem família com o intuito de alcançar sua própria felicidade. No momento em que a família se torna inviável para a realização desse fim, deve-se ter a possibilidade de sua dissolução. Nesse sentido, a

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Constituição Federal vigente promoveu alterações no que concerne à dissolução do casamento, instituindo o divórcio direto como regra no § 6º, segunda parte, do seu art. 226. Ademais, quanto aos prazos, definiu que o divórcio por conversão pode...

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