Da impenhorabilidade do bem de família

AutorMauro Schiavi
Ocupação do AutorJuiz titular da 19a Vara do Trabalho de São Paulo. Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP
Páginas316-326

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A impenhorabilidade do bem de família tem fundamento no princípio da humanização da execução e proteção da dignidade da pessoa humana do executado. Desse modo, o imóvel residencial, se for o único, não pode ser penhorado.

Como nos ensina Maria Helena Diniz16:

O bem de família é um prédio ou parcela do patrimônio que os cônjuges, ou entidade familiar, destinam para abrigo e domicílio desta, com cláusula de ficar isento da execução por dívidas futuras (CC, art. 1.715). Esse instituto visa a assegurar um lar à família, pondo-a ao abrigo de penhoras por débitos posteriores à instituição, salvo os que provierem de impostos relativos ao prédio. Trata-se de bem inalienável e impenhorável.

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Conforme vem entendendo acertadamente a doutrina e a jurisprudência, a impenhorabilidade do bem de família também é estendida às pessoas solteiras, separadas etc., que residem no imóvel, pois a finalidade da impenhorabilidade é a proteção à moradia e à dignidade da pessoa humana do devedor. Nesse sentido dispõe a Súmula n. 364 do STJ:

O conceito de impenhorabilidade do bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.

Vem entendendo a moderna doutrina e também parcela significativa da jurisprudência, corretamente, que todos que residem no imóvel detêm legitimidade para a defesa judicial do bem de família em eventual penhora em processo trabalhista, já que todos são destinatários da proteção legal. Além do devedor, sua esposa e filhos podem ingressar com embargos de terceiro, para a defesa da posse do bem de família. No aspecto, vale destacar a seguinte ementa:

EMBARGOS DE TERCEIRO. IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA. LEGITIMI-DADE DA FILHA DO SÓCIO DA EXECUTADA. A agravante tem interesse em assegurar a habitação da família no imóvel pertencente a seus genitores, por ser integrante da entidade familiar protegida pela Lei n. 8.009/90. Não se pode olvidar que entidade familiar é a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, consoante dispõe o art. 226, §4º, da Constituição Federal. Assim, a filha do casal, que compõe a entidade familiar residente no imóvel, tem legitimidade para propor embargos de terceiro. Ainda que não tenha sido demonstrado de forma robusta que a agravante é possuidora do imóvel, tal como preceitua o art. 1.046 do CPC, os presentes autos tratam de hipótese que admite a ampliação do termo legitimidade, pois o bem a ser tutelado não pode ser considerado de natureza meramente patrimonial, de forma que os sujeitos protegidos pela legislação nem sempre são os proprietários ou possuidores do imóvel. Não se pode negar que no caso da impenhorabilidade do bem de família, o bem jurídico ultrapassa as pessoas do efetivo proprietário ou possuidor, afetando o interesse de toda a entidade familiar quanto à proteção da moradia. COISA JULGADA. Pelo exame do processado houve a oposição de embargos do executado (fis. 80/84) nos autos principais. A matéria indicava que o bem penhorado era bem de família. Pela constatação junto ao site do TRT, não houve formalização de agravo de petição quanto à decisão proferida na ação principal em relação aos embargos à execução. A decisão (fs. 98) concluiu pela improcedência dos embargos. Se houve a rejeição dos embargos e nestes embargos discutiu-se a inexistência do bem de família, tem-se a configuração da coisa julgada. A declaração de bem de família favorece ou prejudica o núcleo familiar, ou seja, a própria entidade familiar. A priori, a embargante é um terceiro em relação aos autos principais, contudo, trata-se de um terceiro juridicamente interessado e cujo interesse se iguala ao executado, visto que todos residem no mesmo imóvel. Vale dizer, por ser a embargante, um terceiro juridicamente interessado, há os efeitos da coisa julgada quanto a ela. Por tais fundamentos, entendemos que não há condições de adentrarmos ao mérito do presente litígio, pela formulação da coisa julgada. (TRT/SP - 00019538920125020036 - AP - Ac. 14ª T. - 20130351800 - rel. Francisco Ferreira Jorge Neto - DOE 19.4.2013)

Embargos de terceiro. Impenhorabilidade do bem de família. Interpretação teleológica da Lei n. 8.009/90 c/c arts. , 226, §§ 3º e 4º, e 227, § 6º, da Constituição Cidadã. Filho solteiro. Legitimidade Ativa. Consagração do direito constitucional à moradia. A proteção estendida pela Lei n. 8.009/90 à entidade familiar não se limita ao casamento e/ou à união estável, nem à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, mas também atinge os filhos que eventualmente continuem residindo no mesmo imóvel que antes ocupavam com

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os genitores, os ascendentes e todos os demais componentes do núcleo originário, a teor do amplo conceito de entidade familiar hoje inserido em nosso ordenamento jurídico, inclusive consagrado constitucionalmente. A entidade familiar, no contexto mais amplo da Lei n. 8.009/90, afigura não apenas a instituição social de pessoas que se agrupam usualmente pelo casamento, pela união estável ou pela própria ascendência ou descendência, mas sim compreende todo o parentesco civil ou natural, sem perder de vista a própria família substitutiva. Assim, à luz da teleologia da norma, ainda que se trate de um único membro da família - a exemplo do filho solteiro - mostra-se esse último igualmente albergado pelo manto da proteção legal, porquanto o espírito do legislador indubitavelmente não se dirigiu ao número de pessoas que residem no imóvel, devendo ser exaltados o sentido social e o objetivo maior da norma em exame, qual seja, concretizar e consagrar o direito à moradia do cidadão. (TRT/ SP - 00017514820135020046 - AP - Ac. 9ª T. - 20140009773 - relª. Jane Granzoto Torres da Silva - DOE 24.1.2014)

Nos termos da Súmula n. 486 do STJ, "é impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família" (DJEletrônico 2.8.2012).

De outro lado, a impenhorabilidade do bem de família também tem suporte na proteção ao direito de moradia previsto no art. 6º da Constituição Federal, que assim dispõe:

São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Diante do que dispõe o referido dispositivo constitucional, a moradia é um direito social fundamental. Há autores, inclusive, que inserem os direitos sociais nas cláusulas entre as cláusulas pétreas previstas no art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal.

Dispõe o art. 1º da Lei n. 8.009/90:

O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei.

Há doutrinadores que sustentam a inaplicabilidade da lei do bem de família na Justiça do Trabalho, considerando-se o caráter alimentar do crédito trabalhista, bem como o privilégio típico da verba alimentar.

Nesse diapasão é a posição de Francisco Antonio de Oliveira17:

Temos para nós, também, que a referida lei, ao investir contra o crédito trabalhista, desrespeita mandamento constitucional, que premia os créditos de natureza alimentícia (art. 100), aí incluído o crédito trabalhista em sua inteireza, não somente aquele do trabalhador na residência. E mais: ao se impedir que seja penhorado bem do sócio, cuja empresa desapareceu com o fundo de comércio, estar-se-á transferindo para o trabalhador o risco do

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empreendimento. Quando o empreendimento não dá certo e a empresa não se mostra idônea financeira, e economicamente, pouco importando o motivo ou causa do insucesso, o trabalhador nunca responderá, e isso porque jamais corre os riscos do empreendimento, porque jamais participou do lucro da empresa.

Pode-se também questionar a constitucionalidade da própria Lei n. 8.009/90 ao vedar a penhora do bem de família no processo do trabalho e a admitir para trabalhadores da própria residência ou para tributos incidentes sobre o imóvel, conforme o art. 3º da Lei n. 8.009/90.

Com efeito, dispõe o art. 3º da Lei n. 8.009/90:

A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; III - pelo credor de pensão alimentícia; IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens. VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (Incluído pela Lei n. 8.245, de 18.10.91)

Nessa linha de argumentação, seria possível a penhora de bem de família no processo do trabalho em razão de o referido dispositivo legal trazer discriminação para trabalhadores da própria residência e de outros trabalhadores (art. 5º, caput, da CF e art. 7º, XXX, também da CF).

No nosso sentir, o fato de o crédito trabalhista ter natureza alimentar não é suficiente para fundamentar a inaplicabilidade da Lei n. 8.009/90 ao processo do trabalho, uma vez que a finalidade social da norma é a proteção da dignidade da pessoa humana do executado, evitando que este fique sem teto para morar. Além disso, o art. 3º, caput, da Lei n. 8.009/90 é taxativo ao asseverar que a...

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