Da Invisibilidade ao Reconhecimento: mulheres rurais, trabalho produtivo, doméstico e de care

AutorKarolyna Marin Herrera
CargoDoutoranda do Programa de pós-graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas208-233
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2016v15nesp1p208
208 208 – 233
Da Invisibilidade ao Reconhecimento:
mulheres rurais, trabalho produtivo,
doméstico e de care
Karolyna Marin Herrera1
Resumo
Este artigo pretende problematizar a situação de invisibilidade e falta de reconhecimento das
mulheres no meio rural da região Sul do Brasil, por meio da ref‌lexão das possibilidades de supe-
ração de sua condição. Para tanto, foi proposta a adoção da perspectiva analítica da multifun-
cionalidade agrícola para análise das atividades exercidas pelas mulheres rurais, uma vez que
esta perspectiva almeja ir além das abordagens de orientação meramente produtivista e pretende
evidenciar as funções não produtivas da agricultura. Na pesquisa empírica, foram identif‌icadas as
diversas e diferentes atividades que compõem os trabalhos produtivo, doméstico e de care de um
grupo de 18 agricultoras integrantes do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) residentes
no município de Quilombo, no oeste de Santa Catarina, na região Sul do Brasil. Verif‌icou-se que
as agricultoras têm papel fundamental no que concerne à manutenção e reprodução social da
agricultura familiar, uma vez que as suas atividades cotidianas estão relacionadas integralmente
às suas famílias e a seus estabelecimentos agrícolas. Nessa perspectiva, a lente da multifuncio-
nalidade funciona como uma poderosa ferramenta que possibilita visibilizar o papel da mulher
no campo.
Palavras-chave: Mulheres rurais. Multifuncionalidade Agrícola. Gênero. Sociologia Rural.
1 Introdução
A situação de desigualdade de gênero no meio rural está relacionada com
a naturalização do papel do homem e da mulher, que está vinculada à relação
hierárquica dentro das famílias rurais, cuja base material se ancora na divisão
sexual do trabalho. Essa diferenciação é condicionada socialmente através de
vivências, símbolos e representações, e se reproduz no cotidiano da dinâmica
familiar. Segundo Sorj (2010), as desigualdades e diferenças de gênero2 repou-
sam sobre uma norma social que associa o feminino à domesticidade e que
1 Doutoranda do Programa de pós-graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). E-mail: karolynaherrera@yahoo.com.br.
2 A concepção de gênero adotada neste artigo se baseia no clássico texto de Scott (1995).
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 15 - Edição Especial - 2016
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expressa na divisão sexual do trabalho, atribuindo prioritariamente às mulhe-
res a responsabilidade do trabalho doméstico e com os cuidados da família.
Devido à divisão sexual das atividades, usualmente cabe ao homem a
responsabilidade do trabalho produtivo da agricultura, e à mulher3, o traba-
lho relativo aos cuidados domésticos e de care4. A divisão sexual do trabalho
está, também, relacionada com a representação social do ser mulher e do ser
homem na nossa sociedade, ou seja, em última instância, o valor social do
trabalho é dado a partir de quem o executa e não pela natureza do trabalho
em si (HIRATA; KERGOAT, 2007).
A denominação de trabalho “pesado e “leve”, abordados por Paulilo
(1987), corrobora essa armativa, uma vez que tal diferenciação é imprecisa
e possui determinantes culturais, pois o que é considerado “leve” ou “pesa-
do” depende da perspectiva social analisada. Dentro das atividades cotidianas,
homens e mulheres realizam trabalhos pesados, tais como cortar lenha, lidar
com a roça, carregar lhos pequenos e transportar água quando esta está loca-
lizada distante do domicílio. No entanto, o que se pode constatar, conforme
(PAULILO, 1987), é que, quanto mais proeminente o trabalho executado,
mais a mulher encontra-se excluída dele. Ou seja, “[...] o trabalho é leve (e a
remuneração é baixa), não por suas próprias características, mas pela posição
que seus realizadores ocupam na hierarquia familiar” (PAULILO, 1987).
No entanto, diversos estudos apontam (NEVES; MEDEIROS, 2013)
que as atividades das mulheres rurais não estão apenas circunscritas aos traba-
lhos doméstico e de care, pois elas também realizam atividades nas lavouras e
na produção de alimentos, que muitas vezes não são reconhecidas como parte
3 Cabe ressaltar que esta af‌irmação é condizente com o contexto analisado, qual seja, a realidade de mulheres
em áreas rurais do Sul do Brasil. E essa realidade pode ser diferente em comunidades indígenas e/ou não oci-
dentalizadas. Por exemplo, no caso latino-americano estudado por Weinstock (2014), a autora ressalta que
“[…] en las culturas originarias podemos reconocer estructuras de diferencia semejantes a lo que llamamos
relaciones de género en la modernidad, con jerarquías claras de prestigio entre la masculinidad y la feminidad,
representados por f‌iguras que pueden ser entendidas como hombres y mujeres. Pero si bien el género existe,
lo hace de una forma diferente que en la modernidad”.Um estudo emblemático sobre esta temática é o da
antropóloga americana Margareth Mead, Sexo e temperamento em três sociedades primitivas (1935). Mead
foi pioneira ao propor que as características masculinas e femininas ref‌letiam as inf‌luências culturais e sociais,
não se limitando às diferenças biológicas.
4 Segundo Hirata (2010, p.43), “[...] o termo care é dif‌icilmente traduzível, porque polissêmico. Cuidado, soli-
citude, preocupação com o outro, estar atento a suas necessidades, todos esses diferentes signif‌icados estão
presentes na def‌inição do care”.

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