Da legalidade para a governança: impactos do compliance na administração pública digital
Autor | José Luiz de Moura Faleiros Júnior |
Ocupação do Autor | Mestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU |
Páginas | 87-167 |
CAPÍTULO 2
DA LEGALIDADE PARA A GOVERNANÇA:
IMPACTOS DO COMPLIANCE NA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIGITAL
Nunca antes se aventou com tamanha ênfase a necessidade do compliance1 para o
setor público. Sem pretender abordar com amplitude temática todas as peculiaridades
que orbitam o tema, buscar-se-á averiguar o contexto no qual esse clamor toma corpo
e, de forma propositiva, revisitar o princípio da legalidade, indicando nuances de sua
confrontação com o fechamento hermético do ordenamento em torno da segurança
jurídica para indicar parâmetros que viabilizem saudável reconfiguração institucional
para a reinserção e revalorização da ética.
Desde logo, sinaliza-se que a temática da ‘governança pública’ – e aqui não se faz
distinção entre os vocábulos ‘governança’ e ‘compliance’ para fins de simplificação – não
é nova, tampouco inédita. Já aventando o necessário entrelaçamento do tema à siste-
mática da hodierna sociedade da informação, Viktor Mayer-Schönberger e David Lazer,
em 2007, coordenaram estudos voltados à transição ‘do governo eletrônico ao governo
informacional’2, sinalizando uma imperiosa contemplação do assunto no contexto das
atividades estatais.
Fala-se do potencial de alavancagem global que a tecnologia implica em termos
de governança, mas é certo que “usar a governança não implica ignorar questões de
domínio e poder; ao contrário, deveria significar identificar quem propicia afetação às
regras sobre acesso ao poder e como”.3
Nesse exato contexto, André-Jean Arnaud enumera alguns aspectos da mu-
dança paradigmática que denominou de ‘governança corporativa para governança
global’: (i) anseio pelo equilíbrio e pelo controle na gestão da empresa através da
lógica sistêmica; (ii) a implementação da transparência, assim entendida como o
1. O termo é originário do verbo inglês “to comply”, ou seja, cumprir, agir de acordo com as regras, leis, marcos
regulatórios e normativas internas e externas do mercado.
2. MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor; LAZER, David. The governing of government information. In: MAYER-S-
CHÖNBERGER, Viktor; LAZER, David (Eds.). Governance and information technology: from electronic gover-
nment to information government. Cambridge: The MIT Press, 2007, p. 281. Em síntese, os autores concluem
o seguinte: “We conclude with a more normatively oriented discussion, focusing, in particular, on three overarching
issues: the capacity of government institutions to adapt to the informational flows that are now technically possible;
the balance between individual interests in the informational capacity of government; and the role of potential new
information flows in transforming (or not) the deliberative space.”
3. KJÆR, Anne Mette. Governance. Cambridge: Polity Press, 2004, p. 122, tradução livre. No original: “Using
governance should not entail ignoring questions of rule and power; rather, it should mean identifying who affects the
rules about access to power, and how.”
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIGITAL • JOSÉ LUIZ DE MOURA FALEIROS JÚNIOR
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princípio orientador da boa governança; (iii) a eficiência prestacional, a partir de
uma ressignificação da gestão para melhorar o desempenho da empresa com base
na estrutura de propriedade com a equação de custo-qualidade-serviço, que o autor
denomina ‘reengenharia’; (iv) o acolhimento de um modelo de gestão complexo
através de “racionalização de poderes, pesquisa sobre transparência, equilíbrio e
eficiência, num contexto de mercado competitivo” permeado por soft law e hard law
e complementado por questões sobre o equilíbrio alcançado, os limites e o poder
decorrente do excesso de regulamentação.4
Novamente, quando se retoma o fenômeno globalizatório, surgem alguns questio-
namentos sobre o alcance global da governança no contraponto ao aspecto regulatório,
que, segundo Isabela Ferrari, “deslocou o poder de uma orientação nacional e local
para a esfera global, a partir da influência progressivamente crescente de organizações
supranacionais (como a União Europeia), internacionais (como a Organização Mundial
do Comércio), e transestatais (como a Federação Internacional de Futebol)” 5, a revelar
uma configuração institucional que rompe barreiras e fronteiras e cria largo campo para
a ascensão de atores privados – embora a doutrina vocifere a importância fundamental
do Estado.6
A despeito de tendências e preocupações, são eloquentes os argumentos que sina-
lizam a necessariedade da transição do modelo hodierno de funcionamento do Estado
para um paradigma que consolide a governança em suas raízes institucionais, abrindo
espaço para novos substratos teóricos que suplantem a lógica hoje vigente da estrita
legalidade.
O que se almeja, essencialmente, é “(i) evitar distorções no processo de interpre-
tação; (ii) evitar importações irrefletidas de conceitos; e (iii) evitar a generalização de
argumentos contrários ou favoráveis ao compliance.”7 Para isso, iniciar-se-á com a revisão
detida dos limites da legalidade para, em breves linhas ulteriores, proceder-se a uma
averiguação mais específica sobre os aspectos fundamentais que circundam a análise
propugnada em seu cerne.
4. ARNAUD, André-Jean. La gouvernance: un outil de participation. Paris: LGDJ, 2014, p. 214-223.
5. FERRARI, Isabela. Nova governança: insights para o aprimoramento da regulação estatal. In: BECKER, Daniel;
FERRARI, Isabela (Coords.). Regulação 4.0: novas tecnologias sob a perspectiva regulatória. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2019, p. 112. A autora ainda acrescenta: “O que atualmente vem sendo chamado de “Nova Gover-
nança” corresponde às novas organizações das relações de poder, em suas diversas formas. Essa expressão não
se refere, portanto, a um arranjo predeterminado, mas engloba, como conceito guarda-chuva que é, fenômenos
distintos, identificados nos mais diversos países e instituições. A expressão vem sendo empregada especialmente
para fazer referência a novas soluções, adotadas no campo do Direito Regulatório, para combater alguns dos
problemas da tradicional regulação estatal. A regulação tradicional implica a imposição de condutas sob ameaça
de sanção (por isso é chamada, em inglês, de regulação command and control).”
6. SLAUGHTER, Anne-Marie. The real new world order. Foreign Affairs, Nova York, v. 76, n. 5, set./out. 1997, p.
195.
7. ALMEIDA, Luiz Eduardo de. Compliance público e compliance privado: semelhanças e diferenças. In: NOHARA,
Irene Patrícia; PEREIRA, Flávio de Leão Bastos (Coords.). Governança, compliance e cidadania. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2018, p. 115.
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CAPíTULO 2 • IMPACTOS DO COMPLIANCE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIGITAL
2.1 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE NO CONTEXTO DA SEGURANÇA JURÍDICA
Legalidade, nos dizeres de Ruy Cirne Lima, implica considerar que “nenhum ato
administrativo pode violar a lei e que nenhum ato administrativo que imponha encar-
gos pode ser praticado sem fundamento legal”.8 Nesse contexto, importa destacar que
o contraponto entre legalidade e segurança jurídica sempre norteou a delimitação de
institutos jurídicos fundamentais para o funcionamento do Estado. Conforme se anotou
no brevíssimo apanhado histórico deste trabalho, no curso da evolução dos modelos
estatais, sempre se notou uma pertinência da legalidade para a compreensão da própria
existência do Estado, a se iniciar pela vinculação absoluta da vontade pública à figura
do monarca.
Com a evolução já averiguada no capítulo anterior, caminhou-se para a modela-
gem liberal do princípio em questão, assim indicada por Maria Sylvia Zanella di Pietro:
O princípio da legalidade fundou-se em duas ideias principais: (a) a de que o único poder legítimo
é o que resulta da vontade geral do povo, manifestada pela lei; acima da vontade geral do povo não
se coloca qualquer outra vontade, nem mesmo a do monarca; (b) a de que, a partir do princípio da
separação de poderes, dá-se a primazia ao Poder Legislativo; o Executivo e o Judiciário apenas seriam
os executores das normas postas pelo Legislativo. Paralelamente ao princípio da legalidade, passou
a Administração Pública a submeter-se ao controle judicial e ao princípio da isonomia, pelo qual as
leis devem ser iguais para todos.9
Na evolução do Estado Social, por outro lado, a legalidade estrita se aprimora e
dá espaço a um novo modelo, fortemente influenciado pelo positivismo jurídico e pela
atribuição de função normativa ao Executivo, que passou a editar normas com força de
lei (designadamente os decretos-lei e as medidas provisórias, para listar alguns exem-
plos), gerando instabilidade e queda da legitimidade decisional.
O principal aspecto desse novo momento decorre da perda do “caráter de gene-
ralidade, abstração, impessoalidade [da lei], porque passou a ter caráter individual, na
medida em que atende a interesses parciais da sociedade ou de grupos”.10 Com a evo-
lução ao Estado de Direito, porém, nota-se a inserção de um novo elemento essencial:
8. LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. Revista por Paulo Alberto Pasqualini. 7. ed. São Paulo:
Malheiros, 2007, p. 46. E acrescenta: “Segundo Walter Jellinek, esse princípio [Gesetzmäßigkeit der Verwaltung]
já havia sido definido com indubitável clareza por Montesquieu, quando disse que ninguém pode ser obrigado
a fazer alguma coisa que a lei não o obriga (Verwaltungsrecht, 1929, Berlin, § 5, III, n. 2, p. 83).”
9. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da segurança jurídica diante do princípio da legalidade. In: MAR-
RARA, Thiago (Org.). Princípios de direito administrativo: legalidade, segurança jurídica, impessoalidade,
publicidade, motivação, eficiência, moralidade, razoabilidade, interesse público. São Paulo: Atlas, 2012, p. 5.
E a autora ainda acrescenta: “Desse modo, o princípio da legalidade, na fase inicial, correspondente ao período
do Estado de Direito liberal, assim se caracterizava: (a) o único poder legítimo é o que resulta da vontade geral
do povo, manifestada por meio do Parlamento, razão pela qual o princípio da separação de poderes tinha uma
interpretação bem restrita, porque a lei é aquela baixada pelo Parlamento, cabendo ao Judiciário e ao Executivo
apenas a sua aplicação aos casos concretos; (b) as leis devem ser iguais para todos; (c) as leis têm um conteúdo
substancial, representado pela ideia de direito natural, decorrente da natureza do homem e descoberto pela ra-
zão; daí a conclusão de que o Poder é limitado por um direito superior, que está fora de seu alcance mudar; (d) o
princípio da legalidade era entendido no sentido da vinculação negativa, significando que a Administração pode
fazer tudo o que a lei não proíbe.”
10. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O princípio da segurança jurídica diante do princípio da legalidade, cit., p. 6-7.
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