Da nulidade dos títulos

AutorMelina Lemos Vilela
Páginas155-210

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4.1. Situação jurídica das alienações de terras devolutas situadas nas faixas de fronteira

Atualmente tem havido diversas ações ajuizadas pelo Ministério Público Federal e pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) contra pessoas físicas e até mesmo jurídicas contra alienações ou concessões de propriedades feitas pelos estados da federação, requerendo a anulação dos títulos de aquisições de terras do Estado, por entenderem que, como as faixas de fronteiras são terras devolutas pertencentes à União, por esse motivo o Estado da unidade federativa não poderia ter alienado ou feito concessão dessas terras para fins de colonização.197 198 199

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Primeiramente, deve ser observado que antes do período republicano, todas as terras devolutas eram tidas como de domínio do Brasil Imperial e não havia preocupação alguma em indagar sobre a legitimidade dos títulos.

Após a promulgação da Lei de Terras, as áreas localizadas nas faixas de fronteiras, apesar de serem consideradas terras devolutas da União, as terras ali existentes foram alienadas pelos Estados da Federação, com a posterior emissão de títulos devidamente registrados nos Cartórios de Registros de Imóveis.

Em relação aos títulos emitidos pelo Estado, em 2011, José Lacerda, Secretário Geral da Casa Civil do Governo do Mato Grosso, manifestou-se da seguinte forma:

“Na alienação original, feita pelo Estado de Mato Grosso, a venda (objeto dos processos administrativos), teve início com requerimento de compra. Os editais foram afixados na Coletoria Estadual e publicados no Diário Oficial. O diretor do Departamento de Terras e Colonização lavrou certidão com declaração sobre o cumprimento das formalidades legais, sem protesto ou contestação. O

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Edital de Venda foi publicado e o pagamento do valor da terra nua foi realizado, aperfeiçoando o negócio jurídico e expedido o título provisório e definitivo”.200No entanto, tal fato não é exclusivo da discussão nos dias atuais, pois em 1985, Tupinambá Nascimento já demonstrava em seu livro o que tinha acontecido em relação à alienação das terras:

“Sem dúvida, portanto, que as terras devolutas nas faixas de fronteira eram e são propriedade da União. Por isso, no conteúdo do direito de propriedade se insere o poder de dispor, mais propriamente o de alienar, gratuita ou onerosamente, direito este exclusivo do titular dominical. Ocorre, porém, que os Estados, não titulares de tais áreas, andaram as alienando ou as concedendo a particulares. Como consequência, tais atos representavam, genericamente, transferências a non domino, sem eficácia jurídica”.201Percebe-se, então, que os Estados alienaram terras na área de faixa de fronteira situada nos 66 km e posteriormente nos 150 km, terras essas que per-

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tenciam ao domínio da União e, por consequência, essas alienações seriam consideradas como nulas.

Sucede a anulação dessas alienações, supostamente feitas de forma indevida, traria ao universo jurídico caos e injustiça social, pois a União, desde 1891, foi omissa em relação a essas alienações, que a seu tempo foram necessárias ao desenvolvimento econômico do Estado e até mesmo à segurança da região, visto que o que se buscava naquela época não era a segurança da região, mas sua ocupação. Por esses motivos, atualmente tem havido diversas tentativas de ratificar os títulos outorgados.

Recentemente, no julgamento da Ação Civil Originária nº 79 de 1959, no Supremo Tribunal Federal discutiu-se se os títulos das terras concedidas pelo Estado do Mato Grosso deveriam ser anulados, mas ao final ponderou-se por maioria de votos pela improcedência da ação, conforme ementa transcrita.

EMENTA: ATO ADMINISTRATIVO. Terras públicas estaduais. Concessão de domínio para fins de colonização. Área Superiores a dez mil hectares. Falta de autorização prévia do Senado Federal. Ofensa ao art. 156, § 2º, da Constituição Federal de 1946, incidente à data dos negócios jurídicos translativos de domínio. Inconstitucionalidade reconhecida. Nulidade

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não pronunciada. Atos celebrados há 53 anos. Boafé e confiança legítima dos adquirentes de lotes. Colonização que implicou, ao longo do tempo, criação de cidades, fixação de famílias, construção de hospitais, estradas, aeroportos, residências, estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços, etc. Situação factual consolidada. Impossibilidade jurídica de anulação dos negócios, diante das consequências desastrosas que, do ponto de vista pessoal e socioeconômico, acarretaria. Aplicação dos princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança legítima, como resultado da ponderação de valores constitucionais. Ação julgada improcedente, perante a singularidade do caso. Votos vencidos. Sob pena de ofensa aos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção à confiança legítima, não podem ser anuladas, meio século depois, por falta de necessária autorização prévia do Legislativo, concessões de domínio de terras públicas, celebradas para fins de colonização, quando esta, sob absoluta boa-fé e convicção de validez dos negócios por parte dos adquirentes e sucessores, se consolidou, ao longo do tempo, com criação de cidades, fixação de famílias, construção de hospitais, estradas, aeroportos, residências, estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços, etc. (AÇÃO 79, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 15/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-103 DIVULG 25-05-2012 PUBLIC 28-05-2012) (grifos nossos)

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Portanto, o questionamento que se faz é se os diversos títulos expedidos pelos Estados de Mato Grosso, Goiás e Pará, entre outros Estados da Federação, podem realmente ser considerados nulos, sendo esse o tema deste trabalho e deste capítulo.

Deve-se ter em vista que todas as alienações feitas pelos Estados foram derivadas de um ato administrativo, o que gerou um título registrado no cartório de registro de imóveis.

Neste capítulo demonstraremos quais são as formas de registros imobiliários que existiram no Brasil e quais são os registros atualmente utilizados e também trataremos neste capítulo sobre os atos administrativos, de forma a melhor compreender, porque diante de algumas circunstâncias os atos administrativos que deram causa a alienação das terras localizadas na faixa de fronteira são passíveis de nulidade.

4.2. Do sistema de registro imobiliário brasileiro

Para discorrer técnica e juridicamente sobre títulos de imóveis particulares, é necessário que entender o sistema de registro imobiliário existente no Brasil,

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por ser ele instância indispensável para a realização das transmissões e de todos os atos posteriores à transcrição ou matricula original, de forma que esses atos deem publicidade a todos os atos realizados em relação a qualquer imóvel.

Mauro Cunha afirma que em relação às terras públicas, estas não estão sujeitas ao registro imobiliário, pois, por ser pública, a terra não depende de comprovação, o que não ocorre com a terra particular.202Esse também foi o entendimento do Min. Aliomar Baleeiro, em 1968, ao afirmar que todas as terras são públicas.203“As terras do Brasil foram objeto de conquista e posse, por Pedro Alvares Cabral para o Rei de Portugal. Ela passou a ser uma fazenda do Rei, ficando no domínio real até a Independência, quando foi transferida para o Patrimônio Nacional, lá permaneceria todo o tempo do Império, até que o art. 64 da Constituição de 1891 a distribuir aos Estados em cujos limites se encontrava. Então, os Estados, como sucessores da nação brasileira,

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e a nação brasileira, como sucessora do patrimônio pessoal do Rei do Portugal, não necessitam trazer nenhum título. O título é a posse histórica, o fato daquela conquista da terra. A terra, no Brasil, originalmente era pública. O Rei desmembrou pedaços, áreas enormes, as chamadas sesmarias, e doou-as. Houve esse processo até quase a Independência. Depois da Independência, estabeleceu-se que não poderiam ser mais objeto de doações ou concessões. Deveriam ser vendidas. Ora, o Rei de Portugal não dava terras. Ele fazia uma espécie de concessão aos sesmeiros, para sua efetiva utilização econômica. O que queria era fundar um império. Queria que o sujeito trouxesse dinheiro, homens, ferramentas, animais, lavrasse a terra, valorizasse-a, com o que o Rei receberia seus impostos, tanto que reservava certos direitos (...). Basta o fato de não terem cumprido suas obrigações – como, geralmente, não cumpriam – para com a Côroa Portuguêsa, para que caíssem em comisso, por diferentes maneiras”.

Neste capítulo serão tratados os registros imobiliários existentes no Brasil desde sua descoberta, bem como as formas de transmissão de imóveis do Estado para particulares.

O Brasil Colônia teve como forma de distribuição das sesmarias as cartas de doações e os forais. Pode-se dizer que nesses primeiros títulos de concessão de áreas rurais, na maioria das vezes, apareciam deli-

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mitações de áreas, como por exemplo, tantas léguas de terra. Algumas vezes essas áreas estavam devidamente confrontadas e demarcadas mas, no entanto, houve situações em que não havia como calcular a extensão da área concedida.

COSTA PORTO cita um exemplo que demons-tra a situação daqueles títulos no tempo do Brasil Colônia.

“Em 1556, por exemplo, D. Beatriz distribuiu a Duarte Lopes uma sesmaria em Olinda,...

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