Da coação e estado de perigo

AutorBassil Dower, Nelson Godoy
Ocupação do AutorProfessor Universitário e Advogado em São Paulo
Páginas352-366

Page 352

24. 1 Conceito

"Aquele que presta socorro a terceira pessoa em estado grave, levando-a a hospital para tratamento e vê-se compelido a assinar contrato de prestação de serviços como condição de internação do enfermo, não pode ser responsa-bilizado pelo pagamento das despesas com o atendimento médico-hospitalar, em face do estado de perigo em que foi celebrada a avença, devendo, em tais casos, serem aplicados os princípios que regem o instituto da coação" (RT 760/266).

Page 353

Casos como os que seguem também são freqüentes perante os nossos tribunais. Suponhamos que um indivíduo seja intimado a comparecer ao Posto Policial acusado de ter provocado incêndio nos campos circunvizinhos por causa da queimada que realizou em sua fazenda e sob ameaça de processo criminal, assina três notas promissórias; ou, é o caso da mãe que ao saber da acusação que pesa sobre seu filho - de ter dado desfalque como caixa do banco em que trabalha - assina uma nota promissória em branco na presença do gerente, do advogado do banco e de policiais que acompanham seu filho.

Em ambas as hipóteses, verificamos a existência de uma ameaça, de uma intimidação que colocou os pacientes numa situação tal que, levados pelo temor, emitiram declaração de vontade que não correspondia à sua vontade real.

Essa pressão, exercida sobre alguém através de uma operação psicológica é a coação civil, moral. A vítima vendo-se diante de uma ameaça e tentando salvar a si mesma ou uma pessoa da família, ou mesmo seus bens, é obrigada a concordar com os que a coagem.

Clóvis Beviláqua definiu a coação civil como "um estado de espírito em que o agente, perdendo a energia moral e a espontaneidade do querer, realiza o ato, que lhe é exigido".260

Observamos, ainda, pelas hipóteses citadas, que não houve o emprego de força física ou material, pois, se isto ocorresse, teríamos então a chamada coação física, que impossibilita completamente a expressão da vontade e torna o ato nulo. Notamos, isto sim, que o agente, para não perder a sua própria liberdade ou para evitar que um de seus familiares sofresse um dano grave, escolheu livremente a prática do ato que lhe era imposto. Vê-se, pois, que a coação civil ou moral se faz para extorquir uma declaração, viciando a vontade pelo temor, anulando na vítima a sua energia moral.

24. 2 Espécies de coação

Há duas espécies de coação: a chamada coação absoluta (vis absoluta), aquela que impede totalmente a vontade, e a coação relativa (vis compulsiva), que vicia a vontade.

Page 354

Na coação absoluta, não existe vontade. É aquela situação em que o ato é imposto à vítima. Portanto, a coação absoluta, é a violência física que não dá escolha à vítima, existindo total ausência de vontade e, nesse caso, o ato é nulo.

A coação relativa permite uma determinada escolha por parte da vítima. O coagido tem a opção de atender o que lhe está sendo exigido, ou a não realização do ato. Haverá apenas, a violência moral ou vis compulsiva, viciando o consentimento.

Caracterizada a coação relativa, qualquer conseqüência deixa de ter validade e eficácia, desde que o coagido proponha ação dentro de quatro anos, pois o ato é anulável.

Concluindo, na coação absoluta ou física inexiste o vício volitivo e sim uma violência corporal, que anula completamente a vontade do paciente; na coação relativa, a vontade é conturbada pelo temor, mas a vítima tem escolha.

O Código Civil não cogita da primeira; somente trata da segunda, aquela que incute no espírito do coato fundado temor de dano à sua pessoa, aos seus bens ou à sua família. A física é objeto de estudo na cadeira de Direito Penal.

24. 3 Requisitos da coação

Somente pode ser proclamado o vício da coação moral, como causa de nulidade do negócio jurídico, se convergentes os requisitos do art. 151 do CC, in verbis:

"A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou a seus bens".

Daí, pode-se enumerar os seguintes requisitos essenciais, pois faltando um deles, a coação não ocorrerá:

  1. a coação deve ser a causa do ato negocial;

  2. deve incutir ao paciente um temor justificado261;

    Page 355

  3. o temor deve ser atual ou iminente;

  4. deve haver ameaça de prejuízo à sua pessoa, aos seus bens ou à pessoa de sua família.

24.3. 1 A coação deve ser a causa determinante do ato negocial

Entre a pressão e a declaração do paciente deve existir um nexo causal, uma relação de causalidade, ou seja, para a anulação do ato ameaçador, a pressão deve ser a causa do ato. "A coação deverá imperar antes e durante a efetivação do ato, - escreve Jefferson Daibert - porque se ficar provado que a coação existia anteriormente ao ato, mas que simultaneamente à sua efetivação já não mais sofria a vítima os efeitos dela, não poderá ser considerada como causa determinante da prática do aludido ato".262"Se alguém foi vítima de ameaça, mas deu seu assentimento independente dela, não se configura coação. É possível que sua concordância tenha coincidido com a violência, sem que esta gerasse aquela. Em tal hipótese, - conclui o Tribunal - o ato sobrevive imaculado, dada a espontaneidade do querer" (in RT 705/97).

24.3. 2 A coação deve incutir ao paciente um temor iminente e considerável

A lei é expressa no sentido de que "a coação há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens", ou seja, a ameaça deve provocar temor

Page 356

adequado capaz de impressionar realmente a vítima263.

Se as ameaças forem vagas, de efeitos incertos e distantes, tornam-se insuficientes para constituir coação (in RT 550/201, 524/65, 440/73). A ameaça que vise impossibilitar o exercício normal de um direito também não constitui coação (CC, art. 153). Tem-se entendido, com inegável acerto, que aquele que se casa para extinguir a ação penal que pesa sobre ele, não poderá alegar coação, pois o exercício daquela ação que se apoia em lei, não caracteriza injustiça e ameaça (in RT 413/369). "A parte que firma contrato para pôr cobro a situação irregular por ela mesma criada não poderá posteriormente furtar-se a seu cumprimento sob o pretexto de o haver celebrado sob coação, consistente na promessa que lhe teria feito a outra parte de demandá-la pela irregularidade. Isto porque não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito" (in RT 664/146).

Portanto, a ameaça para invalidar o negócio jurídico deve ser grave e injusta. Nessa linha de pensamento, devemos ouvir a palavra de Orosimbo No-nato: "Não basta qualquer constrangimento para que haja o ato jurídico como viciado. Como diz Demongue, raros são os atos humanos que se praticam com espontaneidade, desgrilhoados de qualquer causa extrínseca. Todos vivemos sob o império de circunstâncias mais ou menos opressivas. Para que ocorra, porém, coação, mister se faz que se atinja o limite da anormalidade"264. "A simples preparação do ambiente, tendente a impressionar o paciente, tão comum nos negócios que se fazem nos dias atuais, quando muito pode considerar-se instrumento de pressão, e não de coação" (in RT 591/231).

Para verificar se a ameaça é grave, a coação deverá ser apreciada em cada caso concreto, levando em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente, o grau de cultura da vítima etc (CC, art. 152).

24.3. 3 O temor deve ser atual ou iminente

Não se admite coação depois da prática do ato. Para a coação constituir vício capaz de anular o ato negocial é essencial que o mal ameaçador

Page 357

se realize no momento em que a manifestação da vontade é declarada, ou seja, em um futuro mais ou menos próximo. Vale dizer, o temor deve ser atual ou iminente. Não tipifica coação, se o temor não for atual.

24.3. 4 Ameaça de prejuízo à sua pessoa, à sua família ou aos seus bens

A pessoa ameaçada deve crer, subjetivamente, que irá sofrer um dano sério sobre seu corpo, sua vida, sua liberdade, sua honra, ou seu patrimônio, quer em relação a ela própria, quer em relação a pessoas de sua família. O exemplo dado no começo bem mostra essa situação: a mãe, ao saber da acusação que pesa sobre seu filho - de ter dado desfalque como caixa do banco em que trabalha - assina uma nota promissória em branco.

24. 4 As excludentes da coação

O nosso Código Civil considera como excludente da coação, o exercício normal de um direito e o simples temor reverencial. Tal é a regra do seu artigo 153:

"Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial".

Analisemos separadamente estas duas espécies que excluem a coação.

24.4. 1 Exercício normal de um direito

Primeiramente, meditemos sobre a seguinte ilustração: Um empresário...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT