Da segurança à cobiça: um breve relato da transição dos argumentos abolicionistas nas propostas legislativas no Parlamento

AutorGuilherme Del Negro
CargoDoutorando em Direito - Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil. Mestre em Direito - Bolsista CAPES. Professor Assistente no Instituto Rio Branco
Páginas268-299
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DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7976.2018v25n40p268
Da segurança à cobiça: um breve relato da transição dos
argumentos abolicionistas nas propostas legislativas no
Parlamento
From security to greed: a brief account of the transition from
abolitionist arguments to legislative proposals in Parliament
Guilherme Del Negro*
Resumo: Os vívidos debates legislativos no parlamento brasileiro sobre a
proibição do tráco e a abolição da escravidão desmontam a imagem de uma
apatia institucionalizada ou de um comprometimento dissimulado com a causa
abolicionista no cenário internacional – existiam preocupações sinceras com
os rumos da nação. No artigo, sistematizo os argumentos mais comumente
invocados no parlamento imperial e periodizo os projetos de lei ali apresentados,
de modo a associar ideias e leis. Dessa associação, concluo que, ao passo que
a ideia da abolição amadurecia e ganhava corpo, os argumentos transitaram
da defesa da segurança nacional para a condenação da cobiça.
Palavras-chave: Debates legislativos, Abolição da escravidão, Tráco negreiro.
Abstract: The vivid parliamentary debates in Brazil regarding the prohibition
of slave trade and the abolition of slavery challenge the idea that the parliament
was apathetic or faked its commitment only to impress the international arena
– there were sincere concerns regarding the future of the nation. In this article,
I systematize both the ideas that thrived in parliament and the drafts regarding
slavery and slave trade, in order to entangle laws and concepts. With this in
mind, I conclude that, whilst the idea of abolition was ripening, the speeches
changed their focus from security concerns to the condemnation of greed.
Keywords: Parliamentary debates, Abolition of slavery, Slave trade.
* Doutorando em Direito - Universidade de Brasília, Brasília/DF, Brasil. Mestre em Direito - Bolsista
CAPES. Professor Assistente no Instituto Rio Branco. E-mail: guilhermedelnegro@gmail.com
Artigo
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Revista Esboços, Florianópolis, v. 25, n. 40, p. 268 - 299, dez. 2018.
Introdução
Em tese publicada em 1896, W. E. B. Du Bois notou que a abolição
da escravidão, nos Estados Unidos da América, traduziu-se em três diferentes
esforços: a luta por proibir juridicamente a escravidão, a luta por elevar os
padrões morais da nação e a luta por tornar a escravidão não rentável1. Com
esses três critérios, o autor quer armar a política, a economia e a moral simul-
taneamente como instrumentos e como argumentos para a luta abolicionista.
No Brasil, a utilização de instrumentos econômicos e morais teve menor
importância, visto que as iniciativas abolicionistas foram tomadas, em maior
parte, pela via política direta e pela pressão social sobre os órgãos legiferantes,
diferentemente da experiência norte-americana, na qual a participação civil
organizada envolveu, inclusive, amplo boicote a produtos fabricados com
mão-de-obra escrava em comunidades protestantes e campanhas religiosas
para a excomunhão de proprietários de escravos. Por outro lado, o uso de
argumentos políticos, econômicos e morais foi abundante. Em diversas
iniciativas legislativas brasileiras, os argumentos dos abolicionistas articulam
essa tríade de razões para justicar políticas especícas para a extinção, gradual
ou imediata, do tráco ou da escravidão.
No artigo, examino as principais iniciativas legislativas discutidas
no Parlamento do Império do Brasil e na Assembleia Nacional Constituinte
(ANC) de 1823-24 com a nalidade de sistematizar e analisar os argumentos
contidos nas propostas mais relevantes, desde a representação de José Bonifácio
até a Lei Áurea. Para tanto, adoto a tipologia tripartite de W. E. B. Du Bois,
sistematizando tais argumentos em: políticos, econômicos e morais.
Pretendo mostrar que as questões políticas, morais e econômicas ainda
estavam sujeitas a signicativas controvérsias à época, e não a uma simples
hipocrisia institucionalizada. Havia dúvidas quanto à melhor solução para o
problema da escravidão – oscilava-se entre a extinção do tráco, a abolição
gradual e a abolição imediata.
Compreender as discussões subjacentes aos esforços abolicionistas
no Brasil auxilia-nos a afastar lugares comuns que consideram a abolição da
escravidão um processo natural. Tanto o determinismo fundado em causas
econômicas, caracterizado por Sidney Chaloub como aquele em que “a
decadência e a extinção da escravidão se explicam em última análise a partir
da lógica da produção e do mercado”2, quanto o suposto “despertar” diante de
direitos humanos aparentemente preexistentes, não reetem a pluralidade de
concepções que coexistiram de 1823 a 1889.
O artigo está estruturado em três partes. Primeiramente, sistematizo
as propostas legislativas tramitadas no parlamento, para periodizá-las em
relação às soluções propostas: a proibição do tráco, a abolição gradual e a
abolição imediata. Em segundo momento, examino os argumentos levantados
para a abolição, segundo a tipologia já explicitada: de início, os argumentos
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Revista Esboços, Florianópolis, v. 25, n. 40, p. 268 - 299, dez. 2018.
políticos, em seguida, os econômicos, e, por m, os morais. Por último,
associo a periodização dos projetos de lei com os argumentos então existentes,
construindo uma história do pensamento legislativo que descreve a mudança
das propostas abolicionistas ao longo do tempo.
É certo que a crença na superioridade civilizacional europeia permeia as
discussões de nosso Parlamento, no que é possível armar que o pensamento da
elite nacional estava colonizado: sabiam que não eram europeus, mas sempre
almejavam sê-lo.3 Ater-se a isso, contudo, é uma leitura extremamente simplista,
e, como se poderá ver, não estávamos completamente alienados: a atenção à
situação nacional permeou várias propostas para acelerar ou atrasar o ímpeto
abolicionista. As discussões parlamentares brasileiras, que culminaram na
aprovação da Lei Áurea, não se devem somente a pressões estrangeiras, mas
são o resultado de forças internas legitimamente nacionais. É o que veremos.
A sucessão de propostas legislativas: do tráco à abolição imediata
As propostas abolicionistas oscilaram, ao longo do tempo, quanto aos
mecanismos propostos para se chegar ao m da escravidão. Foram três as
formas articuladas para tanto, que podem ser agrupadas em distintos períodos:
de início, deu-se prioridade à extinção do tráco, posteriormente à abolição
gradual e, por m, à abolição imediata.
Em um primeiro momento, as propostas legislativas se limitavam a
abordar a abolição do tráco negreiro, não a abolição da escravidão. Essa
característica está de acordo com o cenário externo. Na Inglaterra, foi fundada
em 1780 a Sociedade para a Abolição do Tráco Escravo, mas a primeira
sociedade a lutar pela abolição da escravidão (embora gradual), foi instituída
somente em 1823, coincidentemente o mesmo ano em que José Bonifácio
apresentaria sua Representação sobre a Escravidão na ANC. Além disso, as
pressões da Inglaterra sobre o Brasil na época da independência concentravam-
se exclusivamente sobre o problema do tráco, abolido naquela nação em 1807
(o Slave Trade Act)4. A escravidão, por sinal, só viria a ser abolida na Inglaterra
por lei de 1833 (o Slavery Abolition Act).
Há duas razões principais para a ênfase inicial se restringir ao tráco:
por um lado, acreditava-se à época que “a supressão do tráco acarretaria o m
da escravidão”5. Essa crença se deve principalmente à noção de que a elevada
mortandade do negro seria algo natural e incontornável, e que o recurso ao
tráco seria a única forma de manter a escravidão. Por outro lado, prevalecia
à época a noção iluminista de que a ordem social deveria ser preservada – as
transições sociais deveriam ser graduais, sendo mudanças bruscas um mal
social6. Nas palavras de José Bonifácio: “torno a dizer porém que eu não desejo
ver abolida de repente a escravidão; tal acontecimento traria consigo grandes
males”.7 A proibição do tráco levaria gradualmente ao m da escravidão, da
melhor maneira possível: sem violar o direito de propriedade.

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