Da sucessão numa conta de facebook: permitirá o ordenamento jurídico português uma solução semelhante àquela adotada pelo acórdão do III ZR do BGH de 12 de julho de 2018?

AutorElsa Vaz de Sequeira
Ocupação do AutorProfessora auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e coordenadora da secção de Lisboa do Católica Research Centre for the Future of Law
Páginas1061-1078
59
DA SUCESSÃO NUMA CONTA DE FACEBOOK:
PERMITIRÁ O ORDENAMENTO JURÍDICO
PORTUGUÊS UMA SOLUÇÃO SEMELHANTE
ÀQUELA ADOTADA PELO ACÓRDÃO DO III ZR
DO BGH DE 12 DE JULHO DE 2018?
Elsa Vaz de Sequeira
Professora auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e
coordenadora da secção de Lisboa do Católica Research Centre for the Future of Law.
Sumário: 1. Considerações prévias. 2. O Acórdão do III ZR do BGH de 12.7.2018. 2.1 Situ-
ação sub iudice. 2.2 Da heritabilidade da conta de Facebook. 2.3 Do acesso aos respetivos
conteúdos. 3. Da pertinência dessas soluções à luz do ordenamento jurídico português. 3.1
Da heritabilidade da conta de Facebook. 3.1.1 Da heritabilidade da posição contratual do
utilizador. 3.1.2 Das cláusulas contratuais gerais previstas nas condições gerais do Facebook.
3.1.3 Da tutela post-mortem dos direitos de personalidade. 3.2 Do acesso aos respetivos
conteúdos. 3.2.1 Da tutela da privacidade e intimidade de terceiros. 3.2.2 Da proteção de
dados do de cuius e de terceiros. 4. Referências.
1. CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS
I. A internet veio viabilizar o aparecimento e o desenvolvimento das chamadas redes
sociais, nas quais assume protagonismo o Facebook, criado em fevereiro de 2004. Trata-se
de uma plataforma digital que permite aos seus utilizadores publicar posts, comunicar e
comentar os posts divulgados pelas pessoas que integram a sua lista de contactos, receber
e partilhar notícias e publicidade direcionada aos respetivos interesses.
A adesão ao Facebook implica a celebração de um contrato, cuja natureza jurídica
muito tem sido discutida. Não é este o lugar apropriado para proceder a uma análise
detalhada da questão. De forma sintética, poderá dizer-se que se trata de um contrato
atípico e oneroso, por mor do qual se procede à troca de dados do utilizador, pela prestação
a cargo do Facebook de serviços de comunicação e de armazenamento de informação.
Não raro descobre-se nesse negócio elementos do contrato de empreitada – no tocante à
manutenção da plataforma – e do contrato de locação – relativamente à guarda dos dados
do utilizador. Este contrato atribui ao aderente o direito a participar na rede, de aceder
aos seus dados e ao armazenamento de toda a informação contida na conta1.
1. V. Fußeder (2019), p. 30 e ss., Knoop (2016), p. 967, Bock (2017), p. 377 e ss.
DIREITO DIGITAL E INTELIGENCIA ARTIFICIAL.indb 1061DIREITO DIGITAL E INTELIGENCIA ARTIFICIAL.indb 1061 23/02/2021 14:55:4323/02/2021 14:55:43
ELSA VAZ DE SEQUEIRA
1062
II. Pois bem, aquilo que importa agora precisar é o efeito da morte do utilizador na
relação contratual que este mantinha com o Facebook. Concretamente, se esta posição
pode ser herdada pelos seus sucessores e, a ser esse caso, se isso implica a possibilidade
de estes acederem ao conteúdo da conta do de cuius.
2. O ACÓRDÃO DO III ZR DO BGH DE 12.7.2018
2.1 Situação sub iudice
Após a morte da sua f‌ilha menor, a mãe da falecida pediu o acesso à conta desta,
incluindo o conteúdo das comunicações realizadas no âmbito daquela plataforma. Para
além da qualidade de sucessora, a mãe veio invocar como fundamento para aceder ao
conteúdo da dita conta a necessidade de apurar se o atropelamento pelo metro que vitimou
a sua f‌ilha foi um acidente ou, pelo contrário, constituiu um ato de suicídio. O teor das
conversas mantidas pela f‌ilha poderia ajudar a esclarecer se antes de morrer aquela tinha
tido pensamentos autodestrutivos. Não só de um ponto de vista puramente sentimental
essa informação era relevante, como de um prisma jurídico ela possuía um importância
extrema, porquanto possibilitaria arredar as pretensões indemnizatórias do condutor
do metro envolvido no incidente.
O Facebook rejeitou este pedido, alegando que as contas não são passíveis de ser
herdadas, convertendo-se num memorial quando o respetivo titular falece.
A primeira instância decidiu a favor da autora2, enquanto a segunda instância deu
razão à ré3. No dia 12 de julho de 2018, o Bundesgerichtshof (BGH) chegou ao seguinte
veredicto:
“Por morte do titular de uma conta na rede social, o contrato de utilização, de acordo
com o § 1922, transmite-se aos herdeiros. O acesso à conta do utilizador e ao conteúdo
das comunicações guardadas não é impedido pela ef‌icácia post-mortem dos direitos de
personalidade do autor da sucessão, nem pelas regras de proteção do segredo das comu-
nicações à distância ou da proteção de dados”.
2.2 Da heritabilidade da conta de Facebook
I. No Direito alemão vigora o princípio da sucessão universal. De acordo com
o §1922 Abs. 1 do BGB, “com a morte de uma pessoa transmite-se o seu patrimó-
nio como um todo a uma ou mais pessoas”. O que equivale a dizer que a regra é a
transmissão mortis causa da totalidade dos direitos e vinculações na esfera jurídica
do de cuius à data da sua morte. Só assim não será quando a situação for vitalícia ou
quando o seu carácter pessoalíssimo não permite a sua subsistência após o óbito do
correspondente sujeito.
2. Para uma apreciação crítica do Acórdão do Landgericht de Berlin de 17.12.2015, v. Knoop (2016), p. 966-970,
Kuntz (2016), p. 398-400.
3. V. Kammergericht Berlin: Urteil vom 31.05.2017 – 21 U 9/16.
DIREITO DIGITAL E INTELIGENCIA ARTIFICIAL.indb 1062DIREITO DIGITAL E INTELIGENCIA ARTIFICIAL.indb 1062 23/02/2021 14:55:4323/02/2021 14:55:43

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT