O estado entre dados e danos: uma releitura da teoria do risco administrativo na sociedade da informação

AutorJosé Luiz de Moura Faleiros Júnior
Páginas21-47
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O ESTADO ENTRE DADOS E DANOS:
UMA RELEITURA DA TEORIA DO RISCO
ADMINISTRATIVO NA SOCIEDADE DA
INFORMAÇÃO
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Sumário: 1. Introdução. 2. Responsabilidade objetiva e a teoria do risco administrativo. 2.1.
Um breve panorama sobre o risco integral. 2.2. O risco administrativo. 3. Enm, uma Ad-
ministração Pública digital. 3.1. O Estado enquanto agente de tratamento de dados. 3.2. As
excludentes do artigo 43 da LGPD. 4. Compliance digital e um ‘novo’ risco administrativo. 5.
Considerações nais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A compreensão das potencialidades da gestão de dados a partir de paradigmas de
governança digital aplicáveis ao Poder Público ultrapassa as lindes da tecnocracia e
deságua no clamor por um Estado capaz de dar concretude normativa aos deveres de
proteção que lhe são impostos e, em última instância, à promoção da pacif‌icação social
(seu telos essencial).
É nesse contexto que se impõe uma remodelagem do papel da Administração Pública,
agora também inserida no mundo digital e, ao mesmo tempo, usuária e exploradora de
atividades relacionadas a dados que circulam pela Internet.
E, com base nessa atuação, o legislador pátrio não deixou de tutelar as atividades
exercidas pelo Estado, enquanto agente de tratamento de dados, na Lei Geral de Proteção
de Dados (Lei 13.709, 2018), tendo dedicado um capítulo inteiro (artigos 23 a 32) exa-
tamente a este tema, e os dois últimos artigos, 31 e 32, cuidam de deveres de prevenção,
sem expressar categoricamente um regime de responsabilidade civil mais específ‌ico ou
aprofundado do que o regido pela tradicional e vigente teoria do risco administrativo,
o que abre margem a interpretações, especialmente se tais dispositivos forem lidos em
conjunto com os artigos 42 a 44 da lei – que versam sobre regras de responsabilidade
civil e sobre os quais pairam inúmeras controvérsias interpretativas.
Assim, tendo em vista esse tema ainda pouco explorado, analisar-se-á, neste breve
ensaio, a adequação dos elementos tradicionais de regência da responsabilidade civil do
Estado a esse novo contexto, marcado pela presença massiva de dados e pela necessidade
de estruturação de parâmetros específ‌icos para a demarcação do campo de incidência da
LGPD às atividades do Poder Público.
JOSÉ LUIZ DE MOURA FALEIROS JÚNIOR
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2. RESPONSABILIDADE OBJETIVA E A TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO
A responsabilidade civil do Estado, especialmente quanto à sua natureza (se sub-
jetiva ou objetiva) quando decorrente de atos omissivos, sempre suscitou polêmicas no
ordenamento jurídico brasileiro. Em resumo, a responsabilidade civil objetiva dispensa
a comprovação da culpa do agente para torná-lo responsável pela reparação do dano.
Desse modo, para conf‌igurar-se o dever de indenizar do Estado, basta a comprovação da
existência do dano e do nexo causal entre este dano e a atividade estatal. Não obstante,
alguns pontos da teoria da responsabilidade objetiva, notadamente com relação à atuação
estatal – ativa ou omissiva –, ainda causam dissenso e controvérsia, principalmente em
tempos marcados pela transferência das rotinas e atividades públicas para o meio virtual.
Para Gustavo Zagrebelsky, a história constitucional se manifesta na mudança, na
contingência política, na acumulação de experiências do passado no presente.1 Com esse
mote, em breve retrospecto histórico, cumpre anotar que a Constituição de 1946 foi a
responsável por incorporar a teoria do risco administrativo ao ordenamento brasileiro.2-3
Naquele momento, enf‌im, a responsabilidade objetiva do Estado tornou-se a regra, pas-
sando a existir até os dias atuais, com expressa previsão na Constituição da República de
1988, em seu artigo 37, § 6º4, que é praticamente reproduzido pelo artigo 43 do Código
Civil (Lei 10.406/2002).5 Não obstante a clareza com que se encontra solução jurídica
para a responsabilização estatal por atos comissivos, sempre pairaram dúvidas acerca da
incidência dos mencionados dispositivos aos atos omissivos, embora o acolhimento da
responsabilidade objetiva também para as omissões estatais sempre parecesse ser uma
certeira tendência pretoriana, um pensamento de vanguarda, uma realidade inevitável.
O que se notou, porém, revendo a casuística dos tribunais pátrios, foi que, durante
décadas, houve uma completa ausência de pacif‌icação jurisprudencial acerca da ques-
tão, até que, em precedente de 2016 (Recurso Extraordinário 841.526/RS), julgado
pelo Supremo Tribunal Federal com repercussão geral, def‌iniu-se pela prevalência da
responsabilidade objetiva também para as omissões.6 Basicamente, “o que a Corte fez,
1. ZAGREBELSKY, Gustavo. Storia e Costituzione. Milão: Giuffrè, 1993, p. 36.
2. O artigo 194 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 foi a norma que inaugurou, no ordenamento
jurídico pátrio, a teoria da responsabilidade objetiva, desvinculando a responsabilidade estatal de qualquer prova
de culpa ou falta do serviço, pouco importando se o agente público agiu irregularmente. Tal dispositivo previa que
“as pessoas jurídicas de direito público Interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários,
nessa qualidade, causem a terceiros”.
3. Analisando o período anterior, especialmente entre a Constituição de 1891 e as que a ela se seguiram – fortemente
inf‌luenciada pelas grandes codif‌icações civis e pela prevalência da teoria da culpa, de inspiração francesa (“faute
du service”) –, conferir: SEVERO, Sérgio. Tratado da responsabilidade pública. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 47,
nota 159. Por sua vez, explorando as nuances da responsabilidade civil do Estado arquitetada para o século XXI,
conferir: BRAGA NETTO, Felipe. Manual da responsabilidade civil do Estado: à luz da jurisprudência do STF e do
STJ e da teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p.40-69.
4. Art. 37. [...] § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos
responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso
contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
5. “Art. 43. As pessoas jurídicas de Direito Público Interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que
nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver,
por parte destes, culpa ou dolo.”
6. A despeito disso, o entendimento pacif‌icado pelo Supremo Tribunal Federal ainda relegou à análise casuística a
def‌inição última dos fundamentos aplicáveis a um ou a outro caso, razão pela qual novos precedentes surgiram

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