Dados pessoais, identidade virtual e a projeção da personalidade: 'profiling', estigmatização e responsabilidade civil

AutorAlexandre Pereira Bonna
Ocupação do AutorDoutor em Direito ? UFPA, com sanduíche pela University of Edinburgh. Mestre em Direito ? UFPA
Páginas19-38
DADOS PESSOAIS, IDENTIDADE VIRTUAL E A
PROJEÇÃO DA PERSONALIDADE: PROFILING,
ESTIGMATIZAÇÃO E RESPONSABILIDADE CIVIL
Alexandre Pereira Bonna
Doutor em Direito – UFPA, com sanduíche pela University of Edinburgh. Mestre em
Direito – UFPA. Professor de graduação e pós-graduação do CESUPA e FACI-WYDEN.
Sumário: 1. Introdução; 2. Dados pessoais, identidade virtual e a prática do “proling”. 3. A
projeção dos direitos da personalidade no âmbito digital diante da estigmatização (igualda-
de) e da invasão de dados (privacidade). 4. A responsabilidade civil diante da Lei Geral de
do Consumidor e da Lei da Ação Civil Pública. 5. Conclusões. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
No livro “O admirável mundo novo”, Aldous Huxley descreve um futuro distópico
de uma sociedade altamente tecnológica, marcada pela fabricação em massa de pessoas em
laboratório, devidamente divididas em castas (umas mais inteligentes outras destinadas
exclusivamente ao trabalho exaustivo)1, pessoas essas que são educadas pelo governo
desde a infância e durante o sono2 a não terem pensamento crítico3, a consumirem ex-
cessivamente4 e a amarem seus destinos sociais, sem contestações5. Nessa sociedade,
não há qualquer regra moral, devendo os indivíduos seguirem seus instintos e viverem
de forma imediatista6 e, caso f‌iquem tristes, há a distribuição de uma droga da felicidade
chamada “soma”7.
A conexão de tal cenário catastróf‌ico com a temática a ser abordada no presente
artigo diz respeito a forma perigosa de como a tecnologia sempre é vista como progresso8
e a como os seres humanos são tratados como apenas mais um número, em razão de
serem física, química e socialmente iguais e substituíveis dentro de suas castas9. Apesar
de f‌ictício, o livro traz ref‌lexões importantes para a sociedade ou era da informação, que
é uma nova forma de organização social que recorre ao intensivo uso da tecnologia da
1. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Tradução de Vidal de Oliveira e Lino Vallandro. 5. ed. Porto Alegre:
Globo, 1979, p. 14.
2. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo, cit., p. 20.
3. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo, cit., p. 36.
4. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo, cit., p. 23.
5. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo, cit., p. 16.
6. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo, cit., p. 28.
7. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo, cit., p. 35.
8. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo, cit., p. 10.
9. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo, cit., p. 47.
ALEXANDRE PEREIRA BONNA
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informação para coleta, produção, processamento, transmissão e armazenamento de
informações, como no uso das tecnologias de computação e telecomunicações, ao passo
que informação consiste em um dado ou conjunto de dados em qualquer suporte capaz
de produzir conhecimento10.
Isto porque, apesar das inúmeras benesses marcadas pelo uso de tecnologias (maior
velocidade de comunicação, acesso à informação, produtividade, segurança e qualidade
de produtos e serviços etc.), há um risco de que a forma pela qual os dados pessoais são
rastreados pelo Big Data11 seja ofensiva aos direitos da personalidade, notadamente a
privacidade (por manipular e usar dados pessoais sem prévia anuência) e a igualdade
(por deixar pessoas alijadas de certos serviços, produtos e notícias a partir de uma pre-
concepção estigmatizada de um perf‌il digital do sujeito). Nesse sentido, o incremento
tecnológico não é marcado apenas por progressos, especialmente se não existir a corres-
pondente proteção da pessoa humana diante de novas formas de violações de direitos.
Nesse diapasão, tais violações de direitos perpassam pela utilização de dados pessoais
que alimentam o Big Data, e, por exemplo, criam perf‌is com base na personalidade e no
comportamento do indivíduo, sem que esse tenha conhecimento (...) e/ou manipulam
indevidamente tais informações de modo a acarretar discriminação12. Tal como no
romance mencionado alhures, exsurge a potencialidade de que no campo digital o ser
humano seja tratado como mais um número e bloco de informações, perdendo de vista a
sua individualidade e dignidade correlata, sendo o Direito o campo próprio para ref‌letir
sobre o fenômeno do manuseio dos dados pessoais, da criação da identidade virtual e
estigmatização daí consequente em cotejo com a proteção oferecida pela legislação pátria.
Destarte, partindo do pressuposto que a responsabilidade civil é uma categoria
jurídica que se ocupa em impedir e/ou remediar os danos, tanto o dano-evento (caracte-
rizado pela violação de um dever na ordem jurídica) quanto o dano-prejuízo (calcado nas
consequências danosas existenciais ou morais geradas pelo dano-evento)13, o presente
artigo buscará apresentar base teórica sobre dados pessoais, identidade virtual e estig-
matização para em seguida realizar um diálogo entre Constituição Federal de 1988 (de
agora em diante CDC), Código Civil BrasileiroLei Federal n. 10.406/2002 (de agora em
diante CC/2002), Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – Lei Federal n. 13.709/2018
(de agora em diante LGPD) e Lei da Ação Civil Pública – Lei Federal n. 8.347/85 (de
10. VIEIRA, Tatiana Malta. O direito à privacidade na sociedade da informação: efetividade desse direito fundamental
diante dos avanços da tecnologia da informação. 2007. 297f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de
Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2007, p. 156.
11. Big Data representa um conjunto de dados armazenados de enorme volume e de diversas origens, maior do que a
capacidade humana para captura e análise, e que possuem valor dependendo da forma pela qual se escolhe para
processá-los. “O valor é o signif‌icado que pode ser atribuído ao dado por meio da sua análise” (SARAIVA NETO,
Pery; FENILI, Maiara Bonetti. Novos marcos legais sobre proteção de dados pessoais e seus impactos na utilização e
tratamento de dados para f‌ins comerciais. Revista de Estudos Jurídicos e Sociais, Cascavel, v. 1, n. 1, dez. 2018, p. 4.)
12. FREITAS, Cinthia Obladen de Almendra; PAMPLONA, Danielle Anne. Cooperação entre estados totalitários e
corporações: o uso da segmentação de dados e prof‌iling para violação de direitos humanos. In: RUARO, Regina
Linden; MAÑAS, José Luis Piñar; MOLINARO, Carlos Alberto (Orgs.). Privacidade e proteção de dados pessoais na
sociedade digital. Porto Alegre: Editora Fi, 2017, p. 126.)
13. BONNA, Alexandre Pereira. A crise ética da responsabilidade civil: desaf‌ios e perspectivas. Quaestio Iuris, Rio de
Janeiro, v.11, n. 1, p. 365-382, 2018, p. 2.

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