Dano
Autor | Fernando de Almeida Pedroso |
Ocupação do Autor | Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras |
Páginas | 585-596 |
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Objeto material. Com a incriminação do dano, alojado no art. 163 do CP, a lei visa, de forma precípua, a proteger o patrimônio alheio das condutas de vandalismo que, com esteio puramente em sentimentos de maldade, inveja, despeito, capricho, retaliação ou vingança, vêm a arrebentar ou estragar coisas pertencentes a outrem.
Objeto material é a coisa alheia, seja ela móvel ou imóvel.
Se a ação típica deve recair sobre coisa alheia, crível é que o crime não se aperfeiçoa se alguém destrói, deteriora ou inutiliza res nullius (coisa sem dono) ou res derelicta (coisa abandonada), uma vez que tais bens não se encontram sob o domínio de outrem. Mas diversa é a situação se a coisa simplesmente foi perdida (res deperdita), porque sua propriedade não foi renunciada e o bem simplesmente encontra-se temporariamente fora da esfera de disponibilidade física imediata do dominus.
Ademais, sendo o dano crime de natureza patrimonial, é indubitável que a coisa sobre a qual incide a ação punível deve apresentar valor econômico, sequer denotando vulto ou relevo o valor subjetivo ou de mera utilidade se o bem não tiver expressão pecuniária. Nesse caso, configura-se o atípico crime de bagatela, decorrência do princípio da insignificância (v. n. 1.9).
Com relação aos animais que compõem patrimônio alheio, reputamos que o crime de dano somente se tonaliza quando o irracional é morto de forma proposital. A conduta de matar animais está arredada da dicção típica do art. 32 da Lei n. 9.605, de 12.02.1998, o que a desloca para o art. 163 do CP. Perante a lei citada a morte de animal somente é relevante para estruturar qualificadora de natureza preterdolosa (art. 32, § 2º, lei mencionada), à falta de previsão legal da referida conduta (matar) no dispositivo incriminador. Já o dano que envolver maus tratos aos animais (cortar orelhas ou a cauda por pura maldade, seccionar o tendão da pata do irracional etc.), mesmo produzindo prejuízo econômico ao proprietário, refoge à abrangência típica do art. 163 do CP e se subsume no referido art. 32 da lei especial.
Núcleos do tipo e meios executivos. São ações incriminadas, na forma múltipla alternativa ou variável, as de destruir, inutilizar ou deteriorar.
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Destruir significa despedaçar, arrebentar, desintegrar o bem na sua essência. Inutilizar é tornar a coisa imprestável e inservível. Deteriorar não é senão estragar, diminuir o potencial de utilização do bem pela alteração de seu estado, de forma a torná-lo menos próprio ao fim a que se destina, reduzindo, consequentemente, o seu valor econômico.
A lei não incluiu entre as condutas puníveis a ação de fazer desaparecer o bem. O fato, nessa situação, ressente-se da falta de tipicidade: não constitui furto porque não existe ânimo de assenhoreamento e, sob outro aspecto, o bem não sofre alteração física que afete sua estrutura ou valor. Assim, soltar um pássaro alheio da gaiola ou jogar a joia pertencente a alguém no mar (v. n. 13.6) representa conduta carente de tipicidade, a configurar mero ilícito civil.
Meio executivo é qualquer um apto a alterar a estrutura física da coisa. Alguns deles, inclusive, foram erigidos como circunstâncias qualificadoras do delito (v. n. 17.2).
A pichação de muros e paredes de propriedade alheia se encarta na conduta de deteriorar e, assim, oferece subsídios típicos, pois atinge a incolumidade primitiva do bem e sempre requer a sua restauração, acarretando inevitável prejuízo ao proprietário ou possuidor1904. A pichação somente trará a descortino o crime especial e autônomo previsto no art. 65 da Lei n. 9.605/1998 se realizada em imóvel especialmente protegido pela lei para a preservação urbana.
A omissão imprópria também tem seu lugar como forma de execução do crime: agente que, tendo assumido o dever de cuidar de maquinário alheio, propositadamente se abstém de retirá-lo da chuva para causar-lhe ferrugem e inoperância1905ou administrador da fazenda que, por ódio ao proprietário, deixa de regar a plantação, que vem a ressecar e morrer1906.
Sujeitos do delito. Sujeito ativo, em razão da natureza comum do delito, pode ser qualquer pessoa. Exceto o proprietário. Este não reúne condições para figurar como sujeito ativo, porque a coisa deve ser alheia. Mesmo se o bem encontrar-se em poder de terceiro e o proprietário realizar sobre a coisa ação que a destrua ou diminua a sua utilidade, o crime não se aperfeiçoa e outro poderá ser o modelo típico (art. 346, CP). Se o proprietário causar danos no próprio imóvel com o propósito de forçar a saída do inquilino ou arrendatário, tonaliza-se o crime de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, CP). Se ele destrói a própria coisa para receber prêmio
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de seguro, incorre no figurino típico do art. 171, § 2º, n. V, do CP. Se o agente - ilustra Hungria - destrói ou inutiliza, sem autorização legal, a própria coisa, consistente em matérias-primas ou produtos necessários ao povo, com o fim de determinar alta de preços, comete o crime previsto no art. 3º, n. I, da Lei n. 1.521/19511907(atual art. 7º, n. VIII, da Lei n. 8.137, de 27.12.1990 - n.a.). O condômino, porém, pode cometer o crime em comento se danificar coisa comum, salvo se fungível e o prejuízo não exceder o valor da parte a que tem direito1908, decorrendo essa ressalva de analogia in bonam partem com o furto de coisa comum (art. 156, § 2º, CP).
Sujeito passivo é o proprietário ou mesmo o possuidor do bem.
Consumação e tentativa. O crime é material. Conduta e evento (resultado naturalístico ou tipológico) são imprescindíveis ao aperfeiçoamento típico do delito. As ações enunciadas no tipo, uma vez concretizadas, não podem ser compreendidas dissociadas de uma transformação física no mundo exterior, consequência natural das condutas. Por conseguinte, o dano físico, vale dizer, as alterações de ordem material produzidas na coisa atingida, fenômenos que remanescem da conduta de forma perceptível pelos sentidos e objetivamente constatáveis, representam o seu necessário efeito. Nessa conjuntura, porque as ações típicas deixam laivos e vestígios de sua passagem no plano físico, o exame de corpo de delito é indispensável para a sua constatação (v. n. 2.4, in fine)1909.
Crime plurissubsistente, o dano admite a forma tentada. Exemplo: jogar a coisa ao fogo e não conseguir que ela se queime porque é retirada antes de ser danificada1910.
Elemento subjetivo. O crime é essencialmente doloso. Não comporta punição a título de culpa à falta de expressa previsão legal (v. n. 6.5). Assim, se alguém dirige um automóvel com manifesta imprudência e, em dado momento, perde o controle de direção do veículo e, com ele desgovernado, choca o carro contra o muro de uma residência e o derruba, é insofismável que não comete o delito de dano, mas mero ilícito civil, porque a culpa não foi prevista para a espécie criminosa em foco. Pela mesma razão não comete o crime quem arremessa pedra em passarinho e culmina quebrando uma vitrine por erro na pontaria. "Se o agente, pretendendo agredir seu opositor, desfere soco que atinge vidro existente entre ambos, quebrando-o, vidro esse que não fora visado, não responde pelo delito de dano por não ser punido a título de culpa" (RT. 675/398).
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No que tange ao dolo, este é simplesmente genérico. Basta o agente estar cônscio, ao realizar a conduta, de que ela causará prejuízo. É indiferente se age por ódio, vingança, inveja, capricho... Não se exige dolo específico, ou seja, o animus nocendi, a vontade única e exclusiva de prejudicar. A simples conscientização, de parte do agente, de que está a romper ou deteriorar a estrutura física de determinado bem é o bastante para compor o elemento subjetivo do delito, pois o prejuízo está in re ipsa, ou seja, é um consectário natural da conduta. Por esse motivo é que o preso que produz dano à estrutura física da unidade prisional em que se encontra, ao serrar as grades da cela ou abrir um vão no solo ou parede para fugir, perpetra o delito de dano qualificado, que, ao contrário da posição sufragada em algumas decisões, não exige dolo específico1911. Há dano, igualmente, se o preso danifica o veículo que o conduz1912. Nem cabe acenar, para a hipótese de preso que foge ou tenta evasão com danos físicos estruturais à unidade prisional, para o exercício regular do direito. Ao contrário da tese advogada por alguns juristas, não há direito à fuga. A lei reconhece ser justo o anseio à liberdade pelo preso ou pessoa a ser capturada, razão pela qual não guindou a simples evasão como fato provido de visos típicos. No entanto, a circunstância de o fato ser atípico (ressalvada a hipótese de a fuga ser engendrada com violência à pessoa - art. 352, CP) não significa que se tenha reconhecido o direito de fugir. Tanto é exata a asserção que o preso ou pessoa que deva ser capturada, conquanto aja animado do natural instinto à liberdade, não adquire imunidade em relação aos crimes praticados durante a fuga ou sua tentativa1913. Bem demonstra o fato de a fuga não constituir um direito a circunstância de a evasão ou sua tentativa pelo condenado configurar motivo para a regressão no regime de cumprimento da pena, porque caracteriza falta grave1914.
Não descaracteriza o delito de dano, outrossim, o fato de o agente agir destituído do intuito de locupletação ou mesmo estar animado, por vezes, de um propósito econômico, hipótese última que, inclusive, confere visos típicos ao dano qualificado pelo motivo egoístico (v. n. 17.2, com exemplos). Ademais, se o agente, ao perpetrar o dano, encontrava-se imbuído de outros fins, especiais, outra poderá ser a figura delituosa. Se ele destrói ou danifica coisa que representa obstáculo à subtração de determinado bem, o dano passa a ser um...
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